quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Capítulo Quatro - Parte Dois - Philia: Os dias que ainda virão

O médico olhou nos olhos do caçador, que parecia tão pasmo quanto ele.

- Nori-san! Está aí?

Mordeu o lábio, sussurrando, como o que falasse pudesse ser ouvido do lado de fora:

- Você chamou o moleque?
- N-não. – Respondeu Nori, puxando o gakuran para reabotoá-lo.
- Certeza?
- Absoluta.
- Ainda assim – Disse, levantando-se e ajeitando as roupas. – Já vai! – Gritou, virando-se para o rapaz ainda deitado na cama, e sussurrou: – O que está esperando, meu Deus? Levante-se, abotoe seu uniforme!

O garoto suspirou, torcendo a boca.

E quando o médico abriu a porta, vendo Susumu parado lá, com cara de tacho, seguindo um vagalume com os olhos, sentiu vontade de batê-la na cara dele, mas se segurou. Respirou fundo e perguntou, curto e grosso:

- O que é?
- Ah, está aí – Disse o rapaz, sorrindo e fazendo uma reverência. – Konbanwa, Himura-san. Nori-san levou meus hashi.
- Como?
- Nós almoçamos juntos – Prosseguiu ele, com a felicidade intacta. – Acho que, na pressa, ele levou meus hashi.
- Hm. – Fez Minoru, levantando uma sobrancelha. – Almoçaram juntos.
- Sim.
- Entendo. Você quer eles de volta, eh?
- Se for possível...

Parou e voltou os olhares para Nori, que saía do quarto, abotoando o último botão do seu uniforme e parecia um tanto surpreso.

- Konbanwa, Nori-san.
- Konbanwa... Susumu-kun. – Falou, levantando a sobrancelha em seguida, claramente confuso. – Houve algo?
- Sim, sim. Acho que você levou meus hashi sem querer. Na pressa, acho que você pegou eles...
- Hm. Acho que tem razão. Um momento.

Sentou-se no sofá, cruzando as pernas e pondo a bolsa em seu colo, procurando dentro dela os malditos palitinhos. Depois de alguns momentos sem sucesso na busca, levantou os olhos e disse, olhando para Susumu:
- Entre.
O garoto olhou para Minoru, que agora parecia ligeiramente mais zangado, mas foi mesmo assim, sentando-se ao lado do caçador.
- Espero que esse tempo junto dele tenha sido bom, Susumu-kun. – Disse o médico, pondo um sorriso no rosto. – Espero que Nori não tenha sido muito chato durante ele.
- Só me ameaçou jogar da janela umas quatro ou cinco vezes. Não foi muita coisa, acho. – Sorriu de volta.
- Acho que ele deve fazer isso com todo mundo naquele colégio, por isso todos têm medo dele.
- Eh? Nem tanto... Hoje de manhã fomos ambos para a sala do dire- - Começou, sentindo uma cotovelada de Nori e prosseguindo mesmo assim. - -Tor. Isso porque uns rapazes do terceiro ano vieram arranjar briga com ele. Medo? Não sei... Acho que não, Himura-san.
- Mas medo não os impediria de ficar longe – Falou ele, puxando uma cadeira e se sentando, virado para eles. – Medo é como o amor, sabe? Vem em vários sabores.
- Hm?
- Não sabia? Os gregos tinham uns quatro ou cinco amores. Eros, Agape – Disse, contando-os nos dedos. – Storge, Thelema e... Hm...
- Philia – Disse Nori, tirando tudo de dentro de sua bolsa.
- Sim, Philia. Sabe por que os kyofu são um dos piores, junto dos ai? Porque vem em vários tipos. Horror, pânico, fobia... Então. O medo de que falo pode cair na categoria do estranhamento. Nori é um corpo estranho no meio dos normais, então cria esse medo do diferente.
- Medo do diferente?
- O quê? Sim, medo do diferente. Medo de novas coisas. Neofobia.
- Isso... Existe?
- Nossa sociedade está imersa nisso.
- Hm. Acho que compreendo. Mas por que pessoas teriam medo d-
- Achei.
Voltaram-se os dois para Nori, que segurava os hashi e os entregava na mão de Susumu.
- Me perdoe por tê-los levado.
- Eh? – Fez o garoto, pondo os palitinhos no bolso da camisa. – Está... Calmo hoje, Nori-san.
- O comentário é recíproco.
- Bem, acho que vou indo, agora – Sorriu, levantando-se.
- Fique.
- Eh?
- Fique. – Repetiu Nori.
- Mas como? – Perguntou o médico, pasmo.
- Hm, não acho que... Que devo abusar assim da sua calma e boa-vontade, Nori-san.
- Tem ra-
- Fique. Não fará mal.
- Bem, se você assim quer...
- Já jantou?
- Não. Por quê?
- Vou preparar algo, então. Você gos-
- Não precisa, Nori-san! Eu como quando chegar em casa. Não se esforce.
- Susumu-kun, eu quero cozinhar para voc- Vocês hoje. Gosta de comidas ocidentais?
- Sim, mas-
- Certo. Com licença.
Entrou na cozinha e deixou Susumu sozinho com o médico, mesmo sabendo que agora sim um dos dois poderia se matar em momentos. O garoto se sentou no sofá, cruzando as pernas e tirando a lixa do bolso, olhando as unhas e notando que ainda não estavam muito boas. Suspirou e pôs-se a falar:
- Me perdoe por ter interrompido qualquer coisa que estavam fazendo.
- Oh, não foi nada – Falou Minoru, sem conseguir esconder o escárnio. – Depois podemos voltar a fazê-lo.
- Que bom.
- Mas vo-
Barulho de algo caindo no chão, e vinha de fora.
- O que...?
Nori abriu a porta da cozinha e disse, em seu monotom:
- Acabou o macarrão.
- C-como?
- Acabou o macarrão. – Repetiu.
- Tudo acaba nessa casa! – Bufou Minoru, agora claramente furioso. – Eu tenho certeza que comprei bastante para durar por um mês!
- Bem – Disse Nori, dando de ombros. – Acabou.
- Estamos sendo saqueados, mocinho.
- Quem cuida da segurança da casa é você, eu cuido da segurança das pessoas. – Falou ele, dando de ombros de novo e desviando o olhar. Antes que Minoru pudesse responder, ele prosseguiu: - Precisamos ir comprar mais. Eu vou lá.
- Nori...
- Me dê o dinheiro – Falou ele, pondo-se a desabotoar o gakuran e parando no segundo botão, vendo que não havia abotoado toda a blusa. Virou-se de lado e continuou: - Não vou demorar muito.
- Hmf. OK. Certo, Nori. Tudo bem. – Disse Minoru, tirando os ienes do bolso e os deixando em cima da mesa. – Mas volte logo, mesmo. Agora que você falou, estou começando a ficar com fome...
- Certo. Quer ir comigo, Susumu?
- Você não ous- - Sussurrou o outro, antes de ser interrompido pelo rapaz:
- Adoraria!
- Então vamos – Murmurou Nori, deixando o casaco em cima de uma cadeira, pegando o dinheiro, a mão de Susumu e o puxando para fora, tudo tão rápido que o médico foi obrigado a aceitar que ele estava sendo realmente inconveniente com aquela idéia de não falar o que havia de errado.

De começo, Susumu tentou avisar que estavam indo na direção errada – O centro não ficava ao norte – Mas o outro garoto pouco se importou. Mas quando andaram tanto que chegaram a um parque, sentiu-se no direito de perguntar o que diabos Nori pretendia fazer. Desistiu, porém, quando ele praticamente se soltou em um banco, como se fosse um boneco e tivesse acabado de desmontar.
- Eh... Nori-san? Está bem?
- Sim.
- Houve algo.
- Não me diga.
- O que?
- Só preciso que você fique comigo por uma hora e demore ao comer.
- Mas como?! Não vou ser ajudando no que seja que você esteja tramando se não me contar antes.
Nori o olhou, com a sobrancelha levantada, e esticou os braços, tomando quase todas as costas do banco com eles.
- Seu vândalo – Murmurou Susumu, balançando a cabeça. – Ao menos se comporte direito.
- Hmf.
- O que você vai fazer agora? Andar por cima de muretas? – Perguntou, lembrando-se que ele realmente quase andara por cima de um muro quando o salvara. – Esquece. Nori-san, foi você que jogou o macarrão fora, não foi?
- Talvez.
- Nori-san...
- Acho que sim.
- N-
- Não tenho certeza.
- Você quer ficar longe de Himura-san, não quer?
- Provavelmente.
- Você é meio maluco, mas tudo bem. – Disse ele, dando de ombros. – Só por causa do olho roxo?
- “Só”? – Perguntou Nori, abaixando o rosto e levantando os olhos e as sobrancelhas.
- Você me entendeu.
Depois do primeiro minuto de silêncio, Susumu decidiu sentar ao lado dele, mas o mais longe possível. Ao perceber o olhar ligeiramente confuso do outro rapaz, suspirou e disse:
- Só sento mais perto se você fechar os braços.
Este rolou os olhos e apoiou o lado do pé no joelho, tentando se fazer o mais espaçoso possível.
- Você é uma perturbação.
- Sabia que sua calma não duraria tanto, Susumu-kun.
- Eh?
- Estava bom demais para ser verdade.
- Se jogue de uma janela, Nori-san.
- Hmf.
- Feche esses braços.
- Não.
- Olhe o que irão pensar de você. Estamos sozinhos, de noite, nesse parque, e você aí, se estendendo todo.
- Problema?
- Todo.
- Conte sobre.
- Olhe bem, você me disse hoje que eu era bonito-
- Bonitinho.
- Quê?
- Eu disse “bonitinho”. Não “bonito”.
- T-tanto faz! Você me disse isso, depois tentou me beijar, e agora quer ficar com esses braços assim?! – Disse, sabendo que estava ficando vermelho. – N-nori-san, por a-acaso isso foi a... Amor a-à primeira vista?
O outro ficou alguns momentos em silêncio, olhando para cima, como se pensando. Então, foi para um pouco mais perto de Susumu e o puxou para perto, à força, já que ele estava apavorado demais para deixar ao menos o corpo mole para ser puxado. Aproximou o rosto do dele, sentindo que ele a qualquer momento iria ter um ataque, e demorou um pouco para sussurrar:
- Não.
E empurrou o moleque para longe, levantando-se do banco e pondo as mãos nos bolsos, olhando-o com a sobrancelha erguida.
- E-eu te odeio, Nori-san – Gaguejou Susumu, ajeitando-se no banco. – Não me dê... Outro susto assim, por favor.
- Hm?
- Você me assustou! Achei que estava mesmo apaixonado por mim!
- Susumu-kun é um idiota – Disse, apoiando o pé no banco.
- Por quê?
- Não há “amor à primeira vista”. Paixão e amor são diferentes. Amor se constrói com o tempo. Não há como eu te amar se eu ainda te acho um moleque inconveniente – Falou, cruzando os braços. – Já paixão? Também não. Já estou apaixonado por outr- - Começou, levando a mão à testa em seguida. – Kuso.
- Ah, está? – Riu Susumu. – O grande caçador, Nori-san, apaixonado? Por quem, mesmo?
- Cale a boca.
- Nori-san fica...
- Uma graça estressado, eu sei. Eu quis dizer que não, não estou apaixonado por você. Afinal, você é um moleque certinho demais para ao menos pensar em algo com um homem, não é?
Virou o rosto, olhando para o céu de lua cheia – Hm, mais uma semana e talvez ganharia uma folga – E, quando achou que o “Sim” de Susumu estava demorando um pouco demais, se virou, confuso.
Ele ainda estava vermelho, envergonhado, encolhido em si mesmo, com os olhos arregalados, mirando o chão.
- ... Não é? – Perguntou novamente.
- Não sei – Sussurrou Susumu, tão baixo e tão rápido que o outro quase não ouviu.
- Não sabe?
- Não sei, não sei – Prosseguiu. – Olhe, eu nunca gostei de garota alguma.
- Não significa nada.
- Mas não é esquisito? Você e Himura-san... Estão... Huh...
- Juntos?
- S-sim.
- Não.
- Não?!
- Não.
- Como assim “não”? Ele te beijou, não beijou?
- Sim.
- E como não estão juntos?
- Não estando. Por que pergunta, de qualquer maneira? – Indagou o caçador, levando os olhos a ele.
O garoto não respondeu por alguns instantes. Abriu a boca e tentou falar, mas só conseguia gaguejar e não queria se fazer de idiota na frente de Nori.
- Aproveite que estou solteiro – Disse o caçador, sorrindo um bocado e olhando novamente para o céu, suspirando ao ouvir o garoto surtar:
- Pare de achar que estou apaixonado por você! Mas que coisa, seu egocêntrico! Egoísta! Acha que é muito bonito, não é?! V-
- Você disse que sou bonitinho, também.
- Urusai yo! – Berrou Susumu, levantando-se e apontando para ele. – Cale a sua boca! Cale a boca, cale a sua maldita boca, não quero mais te ouvir falar naquilo! Eu só disse de brincadeira! Só porque você falou antes! Não pense que-
- -“eu gosto de você só porque falei coisas do tipo”. Eu sei, eu sei. – Suspirou Nori, pondo as mãos nos bolsos de novo. – Você é muito previsível, Susumu-kun.
- Eu quero te matar! Você não pode agir assim com as pessoas! – Gritou ele, gesticulando. Nori respirou fundo, virou os olhos, puxou ar para falar e logo foi interrompido pelo garoto. – Só porque se você fosse uma garota, já seria minha namorada?!
Desta vez, foi Nori quem ficou congelado lá, parado, olhando-o com as sobrancelhas ligeiramente franzidas e boca entreaberta, sem acreditar no que havia acabado de ouvir.
- S-se você fosse uma garota, já seria minha namorada – Repetiu Susumu, desta vez, mais baixo. – Realmente seria...
- Bem... – Murmurou o caçador, desviando o olhar. – Que bom... Eu acho. – Disse, coçando o rosto com um dedo.
- Você é um desgraçado e eu te odeio, Nori-san. – Bufou.
- O sentimento é recí-
Parou, olhando em volta, e Susumu notou que ele ficara alerta a algo.
- Kuso. – Sussurrou ele, correndo na direção de uma rua escura.
- N-nori-san! – Berrou o garoto, olhando-o ir. – Espere!
Decidiu ir atrás dele, de qualquer maneira.
Ele iria matar um kanjou agora? Bem no meio daquela conversa?
Mas que maldição!
Distraído em seus pensamentos, acabou dando de cara nas costas de Nori e não teve tempo de cair para trás. Por reflexo, fechou os olhos e sentiu-se ser puxado, empurrado e jogado para longe, sentindo-se cair mas não sofrer um impacto tão forte quanto de esperado. Quando os abriu, viu que o caçador o envovia com os braços e o o segurara e provavelmente havia servido de amortecedor na queda, visto que estava com o rosto contorcido em dor e tinha uma das mãos mexendo incessantemente no local da fratura.
- S-seu inútil – Sussurrou, empurrando Susumu novamente e se levantando, batendo as mãos no lado do quadril e vendo que sua kodachi e nem seu revólver estavam com ele.
- Nori-san, o que...
- Não sei – Disse, olhando o kanjou da cor do fogo que estava a alguns passos deles. – Fuja.
- Eu não-
- Fuja, maldição! – Berrou, olhando em volta e procurando por qualquer coisa que pudesse usar de arma.
- Kh!
Quando menos viu, estava novamente no chão. Desta vez, não por ter sido salvo, mas por ter salvo. Tinha salvo? Só sabia que havia dado uma ombrada fortíssima no caçador e havia recebido algum impacto no lado do corpo. Agora, estava deitado, e havia alguma coisa esquisita e vermelha escorrendo nos paralelepípedos, era-
- Droga, Susumu! Você não deveri- - Gritou, parando na metade e se virando, cerrando os dentes ao ver o kanjou parado na sua frente, fazendo algo que parecia um sorriso. – Eu mandei fugir, seu desgraçado. Corra logo enquanto pode.
- E-eu não posso... – Gaguejou o garoto, tentando se apoiar nos braços para levantar.
- Então ao menos se esconda. – Disse, olhando em volta e notando um cano solto de uma tubulação qualquer, em um ponto onde o kanjou havia provavelmente batido antes, já que estava tudo ligeiramente destruído demais.
- Mas...
- Vai me obedecer ou não, Susumu-kun? – Perguntou, olhando nos olhos da criatura e se movendo lentamente. – Saia daqui. Se esconda.
Andou um pouco mais e, quando decidiu que a distância estava boa, se jogou na direção do cano e o puxou com força, soltando-o completamente do conjunto total. Abaixou-se para não ser decapitado por um golpe da criatura, mordendo com força o pulso, muito para o horror de Susumu, e esfregou-o no ferro, manchando-o de sangue.
Quando o kanjou desceu o braço mais uma vez, jogou-se para o lado e bateu o cano nele, deixando uma marca arroxeada. Bateu com ele mais uma vez e na terceira já havia visto que fora uma péssima escolha de arma, já que o kanjou era grande demais para ser ferido do modo que desejava com apenas impacto. Chegou a conseguir desviar da mão enorme dele que iria esmagá-lo contra a parede e já olhava em volta à procura de outra coisa melhor para bater, quando ouviu uma voz gritar:
- Esse é meu!
Levou os olhos na direção do barulho e viu uma garota muito mais baixa que ele correndo ao kanjou.
- Eu disse que esse é meu! Eu vou matar ele! Deixe-o comigo, caçador!
Distraiu-se por alguns momentos e ela é que fez o favor de alertá-lo:
- Cuidado, caçador!
Correu para longe das paredes, parando no meio da rua, e encarou o kanjou de cima a baixo: Talvez tivesse uns três, três metros e meio, talvez um pouco menos, e parecia um pouquinho humano, com uma vasta cabeleira cor-de-laranja, mas seu rosto definitivamente não lembrava o de uma pessoa, com quatro olhos grandes demais, o nariz longo demais e sem boca alguma. E definitivamente estava um pouco lerdo; o que ele poderia ser?
- Hm, como se fazia, mesmo? Felicidade... Shiawase.
Desviou por pouco de um chute da criatura e quase ficou cego de tanta poeira movida por aquilo.
- Criadora, faça isto mais rápido!
- Estou indo!
Viu o kanjou sorrir e dar um peteleco no cano e o soltou antes mesmo do impacto, abestalhado e temeroso que aquilo fosse levar seus braços junto.
- Não está funcionando, criadora.
- Me dê tempo!
- Não acho que tenhamos tempo.
- Eu sei! Estava tudo bem até vocês chegarem e eu não funciono sob pressão!
- E se eu disser que tem um rapaz civil e ferido a-
Caiu para trás com o kanjou o empurrando, rolou para o lado, tentou se levantar, resolveu se deixar cair quando ele forçou sua canela com o pé de tal forma que, se não o fizesse, iria vê-la quebrada e, finalmente, franziu as sobrancelhas ao sentir o pé inteiro em cima de si. Voltou os olhos para Susumu, que conseguira se pôr de pé, sangrava pela testa e tinha a camisa rasgada e manchada e pareceu esquecer de respirar ao ver aquilo, e cerrou os dentes, sentindo a criatura pôr ainda mais força para o esmagar.
- Shiawase... Shiawase... Deuses... Shiawase... – Gaguejava a criadora, com as mãos na frente da boca.
Abriu a boca para tentar respirar quando a pressão começou a ficar insuportável e, por mais que tentasse, não conseguia mover um centímetro do kanjou.
- Eu fico feliz que esteja assim, caçador. – Disse ele.
Chegou a fechar os olhos para ao menos não ver suas vísceras saindo por todos os orifícios, mas sentiu o ar depois do grito:
- Ei, kanjou! Você era meu! Eu estava brigando com você! Deixe-o em paz! Seu problema é comigo, seu idiota!
Susumu correu e se agachou ao lado de Nori, puxando-o para perto e o abraçando instintivamente enquanto perguntava, incorrigível:
- V-você está bem? Meu Deus, o que foi aquilo? Precisamos fugir daqui. Precisamos correr, essa garota cuida dele. Você está me ouvindo, Nori-san? Está vivo, ainda? Vamos fugir daqui. Por favor. Me diz que vamos fugir.
- Você... Você pode ir – Disse ele, apoiando-se na mão para se levantar, coisa que foi quase que imediatamente reprimida pelo outro rapaz, que o abraçou com ainda mais força. – E-eu preciso ficar.
- Ficar e morrer, Nori-san?! Você nem armado está, seu maluco! Vamos embora!
Ouviu o som dos passos da criatura e levantou o olhar, perdendo a fala e a cor.
- N-nori-san...
- Eu havia mandado você fugir, Susumu-kun. – Sussurrou o outro, fechando os olhos.
Viu tudo escurecer quando o kanjou fechou a mão em punho e a jogou na direção dos dois.
- Shiawase!

























- Bom dia, Susumu-kun.

O garoto abriu os olhos de uma vez só, respirando com força, com a imagem do kanjou ainda gravada na sua mente.

- B... Bom dia, Nori-san...
- Como está?
- Não sei – Disse, olhando em volta e reconhecendo seu próprio quarto. – O que... O que houve?
- Você desmaiou.
- Eh?
- Você desmaiou de medo – Falou o caçador, cruzando as pernas e olhando a janela.
- E... Aquela garota?
- Hm?
- A criadora...
- Invocou um Shiawase, destruiu lindamente aquele kanjou, me ajudou a te trazer para a sua casa e inventou que você havia sido espancado por arruaceiros. Acho que convenceu bem seus pais.
- Ah, meus pais...! M-mas, Nori-san, eu quebrei alguma coisa? – Perguntou, passando a mão no rosto e sentindo os curativos nele.
- Não.
- Alguém me, não sei, examinou, depois disso?
- Himura-san.
- Ele me curou?
- Não muito. Não foi preciso.
- E o-
- É por isso que você não é como eu, seu covarde. – Suspirou, recostando-se ainda mais na cadeira.
- Co... Covarde?
- Sim.
- Não sou covarde. Só não sou louco como você, Nori-san, que queria lutar contra aquilo sem armas e- Ah, seu pulso! Você mordeu seu pulso ontem, Nori-san, como ele está agora?!
- Bem – Falou, virando o pulso, que estava enfaixado, para ele. – Acho que já vou agora, Susumu-kun. – Disse Nori, levantando-se e se espreguiçando.
- Mas já?!
- Sim.
- Q-que horas são?
- Devem ser uma e tantas, por aí – Bocejou, pegando sua boina em cima de uma escrivaninha, a pondo na cabeça e dando alguns passos na direção da porta.
- Você... Perdeu a aula?
Com aquilo, Nori parou onde estava e franziu as sobrancelhas.
- Nori-san... Você faltou a aula, por quê?
- Porque eu realmente não tinha condições de ir. Meus ferimentos pioraram.
- E por que está aqui, então?
- Porque fiquei preocupado.
- Preocupado?
- Sim.
- Está aqui desde quando?
- Pare de perguntar.
- Está aqui desde quando, Nori-san?!
- Criatura insistente – Disse, levantando os olhos. – Desde nove da manhã.
- O quê?!
- Desde nove da manhã. – Repetiu.
- Cinco horas esperando eu acordar?!
- Por que não?
- P-porque...
- Você me segurou quando eu precisei ontem.
- Como?
Nori balançou a cabeça, como se o outro fosse um idiota, e foi até ele.
- É um agradecimento – Disse, afastando os cabelos desarrumados da testa de Susumu. – Eu me sinto na obrigação disso.
- Mas o que eu fiz de tão espec-
Calou-se ao sentir ele beijando sua testa e ficou assim por um bom tempo.
- Agora vou-me, Susumu-kun – Disse o caçador, indo até a porta e pondo a mão na maçaneta.
- E-espere...
- Sim?
- Você... Está realmente levando isto a sério... Não está?
- Levando o quê a sério?
- Não sei... Você esteve... Se aproximando tanto de mim ultimamente.
- Idem.
- Mas você... V-você...
O caçador deu de ombros e girou a maçaneta, empurrando a porta em seguida.
- Não vá!
- Por que não? Eu tenho coisas a fazer.
- Aonde você iria?! – Perguntou, levantando-se da cama e dando alguns passos em sua direção.
- Volte. Você precisa descansar.
- Não está nada doendo, Nori-san! Aonde você iria, afinal?!
- Já pedi para parar de perguntar.
- Olhe aqui, - Disse, puxando-o pelo ombro. – Você não pode me dizer o que é ou não para eu fazer. Se eu quiser perguntar, Nori-san, eu pergunto!
- Não encoste.
- Você não gosta nem de contato físico?
- Eu odeio que me toquem sem que eu tenha permitido ou queira ser tocado. – Disse ele, levantando os olhos para o teto.
- Muito bem – Falou Susumu, sem soltar seu ombro. – Me responda onde você vai. Voltar para casa? Reencontrar com Himura-san? Seu olho roxo melhorou um pouco. Ou você vai andar? Porque eu quero andar contigo, Nori-san.
O garoto ficou em silêncio por alguns segundos, e então suspirou e olhou para a mão que ainda jazia em seu ombro, então para Susumu, para a mão e para ele novamente.
- O que houve, Nori-san? – Perguntou o rapaz, sinceramente confuso.
- Tire a mão.
- Seu fresco. – Disse, apertando-o ainda mais. – Não desvie a conversa e me responda.
- Seu quarto é legal.
- Você não sabe o quanto eu odeio quando você faz isso.
- Hm.
- Nori-san, pode ao menos me ouvir uma vez na vida?! Eu só quero saber isso, onde você vai?
Mais silêncio.
- Por favor; por que você tem esse prazer sádico em me... Fazer isso?
- Hm...
- Hm?
- O dia está nublado hoje...
Com aquilo, que havia sido dito com um pequeno sorriso, o rapaz empurrou Nori de tal maneira que este bateu as costas na parede e ficou o olhando, talvez entretido, com o mesmo sorriso de antes.
- Me responda ao menos isso!
- Por que quer tanto saber?
- Eu já disse que quero andar com você.
- E por que isso?
- Porque gosto da sua companhia! E acho que você ainda não quer voltar para a de Himura-san, não é?
- Exatamente.
- Ent-
- Pode me largar, por favor?
- Eh?
- Está me empurrando.
- Eu sei que estou, Nori-san.
- Então pare.
- Não até você me der permissão para ir contigo.
- Oh, é ousado. O que vai fazer comigo caso eu demorar? – Disse, com novamente o sorriso, puxando a mão dele para empurrar seu outro ombro.
- Você também é abusado, Nori-san. E está sorrindo. Por que está sorrindo?
- Não posso me mostrar satisfeito de vez em quando?
- Você é um idiota. Nem parece o garoto de três anos atrás.
- Hm?
- Há três anos – Disse Susumu, diminuindo a força com que o empurrava vagarosamente. – Eu achava que você era uma pessoa diferente.
- E você me observa há três anos?
- Sim.
- Maluco.
- É diferente.
- Insano.
- Eu sempre te admir-
Vendo que Nori ia o empurrar e sair da posição vulnerável, o empurrou de novo.

Há três anos o olhava...
Talvez fosse realmente doentio, afinal.
Mas não podia evitar. Quem mandava Nori puxar sua atenção desde que entrara no colégio? Ele realmente gostava de se mostrar, não gostava?
Se não gostasse, não estaria se exibindo daquele jeito sempre.
Se qualquer coisa, a culpa era dele por chamar sua atenção. Era culpa dele por tê-lo provocado por tanto tempo, não era?

- Você é mesmo doente, Susumu-kun. – Disse, pondo a mão no ombro dele também.
- Não sou.
- Ah, é.
- E pare de tentar fugir. Você mesmo se pôs nessa situação.
- E o que você vai fazer comigo, mesmo?
- Não queira descobrir.
- Não sabe.
- Exato. Não me faça querer descobrir.
- Hm. OK. Você pode ir comigo. Vou andar cinco quilômetros de uma vez só para ver você cair no meio do caminho e ficar morrendo. Agora me solte.

Ele estava o provocando...

- Hm? Me solte, Susumu-kun.

Apertou-o com ainda mais força contra a parede, a qual Nori respondeu olhando um pouco para o lado, entediado, e levantando a sobrancelha.

- Eu já respondi. Me solte.
- Está ficando desconfortável?
- Claro que não. Você só está me empurrando contra uma parede e sem me deixar ir. – Disse, o encarando por alguns segundos, e o puxou pela cintura com força, pondo o rosto perto do dele, e sussurrou: - O que você quer comigo, Susumu-kun?
- M-me solte.
- Solte você, primeiro. Ou eu vou ter que te assustar que nem te assustei ontem, no almoço? – Perguntou, em um tom de voz ligeiramente mais grosso.
- Hm – Engoliu em seco, e pretendia realmente o soltar, até porque não gostava de como ele segurava sua cintura e muito menos o que ele poderia fazer. – Que t-
Segurou o grito quando sentiu Nori uma das mãos em suas costas, as outras atrás de seus joelhos e o levantar do chão, mas não segurou – Nem quis segurar – O tapa que deu no ombro dele. Agarrou-se quase que instintivamente no pescoço do caçador e balançou as pernas, enquanto dizia, entre risadas e gaguejos:
- S-s-seu maluco, m-me ponha no chão!
- Não estou com vontade...
- V-você só pode carregar dez por ce- Meu Deus, Nori-san, você tem que me deixar no chão!
- Tente de novo. – Falou, andando com ele, mesmo que com alguma dificuldade, até a janela.
- Seu maluco! Desgraçado, insano, se alguém nos ver eu te mato e juro que te enforco com seu intestino e penduro seu cadáver num poste!
- Oh, que medo tenho de você – Disse, ameaçando o empurrar pela janela, ao qual Susumu respondeu se grudando ainda mais em seu pescoço. – Eh, Susumu-kun tem medo de altura?
- M-medo?! Eu tenho pavor de altura, eu odeio altura... – Gaguejou ele, com o coração na boca. – Me p-ponha no chão.
- Assim que eu quiser.
- Kisama...
- Largue meu pescoço.
- P-por quê?
- Está me enforcando.
- Se eu largar, v-você me deixa no chão?
- Talvez.
- Então vai morrer enforcado.
- Você sabe o quão estúpido é ficar fazendo essas brincadeiras quando se tem dois enormes curativos no rosto?
- E você, sabe, s-seu idiota?
- Quer que eu te deixe no chão, então?
- De preferência. – Disse Susumu, e percebeu o que havia feito, correndo para corrigir: - SEM me largar agora! Primeiro solte minhas pernas!
Percebeu que Nori ficara ligeiramente decepcionado e suspirou, aliviado, com aquilo. Mas ainda assim, quis gritar e o espancar quando viu que ele pretendia o deixar na cama e realmente o fez, mesmo que sem a mínima delicadeza, simplesmente o largando lá. Então, o caçador puxou uma cadeira, sentou-se nela, apoiou os pés na cama e cruzou os braços, dizendo:
- Troque logo de roupa, nós vamos andar.

Então, era isso.
Nori realmente estava o provocando. Continuava o provocando, para ser exato. Aquela admiração de três anos, então, fora completamente percebida por ele? Ele que agora o pegava nos braços, o chamava pelo nome, o convidava e o tocava e que parecia estar muito bem com isto, então ele realmente aguardava o momento?
E Minoru?
Como ficaria?
Que coisa esquisita... Se amavam, mas não estavam juntos...
Ou só Nori o amava?
E queria fugir dele?
Realmente, ele não era muito centrado.
Hm.
De qualquer jeito...

Capítulo Quatro – Philia: Os dias que ainda virão – Fim

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