segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Nikumu Gaiden - Um

Uma side-story especial escrita por uma pessoa especial em uma série de pequenas fics especiais. Elas não têm título, então preferi apenas numerá-las.

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Hospital branco.
Hospital branco, de paredes brancas e pessoas vestidas de branco.
Hospital branco.
A pequena menina de madeixas pretas estava batendo com as pontas das unhas em uma mesa que fora posta por cima de sua cama ao mesmo tempo que conversava com pequenas fadas coloridas.
- Senhorita Hoshi, visita para você - disse uma enfermeira do hospital.
Ninguém via as fadas. Ninguém que ela não quisesse que visse ou que tivesse olhos treinados para ver.
- Ah sim, deixe entrar.
Menino vestido de preto.
Hospital branco com menino de preto.
- Nori? O que você veio fazer aqui? - disse a menina em grande espanto que logo após tornou-se em um sorriso aberto.
- Tsc. Eu falei para você sair da luta. - o menino não falava muito e ela sabia disso. Só falava o necessário para obter as respostas que queria e responder a perguntas feitas.
- Eu sei, mas se eu saisse você estaria todo machucado agora. - estava olhando-o fixamente com o único olho que podia e com as bochechas infladas. O outro olho estava machucado.
-Tsc. Eu estou acostumado. Você ainda é pequena demais para se arriscar dessa forma. - sentou-se na borda da cama e via o soro ligado a veia dela e outros fios em outras veias.
- Ei! Eu não sou pequena nada! Saiba você que a maioria dos criadores começa a lutar na minha idade, isso é comum. - pôs uma das mãos na cintura. A outra estava toda enrolada e o osso tinha torcido.
- Você é muito teimosa. Vá treinar melhor suas emoções antes de sair lutando dessa forma. - Ele falava de uma forma que parecia não se preocupar mas ao mesmo tempo se preocupando.
- Eu treino todo dia! Eu tenho de por em prática. Um dia eu ia acabar me machucando mesmo... você se machuca todo dia... Achei justo que eu me machucasse dessa vez...
- Idiota. Você não precisa se machucar.
- Você também não.
- Eu estou acostumado.
- Então eu vou me acostumar.
Nori respirou fundo. Discutir com Hoshi nunca dava em lugar algum. Ela era uma cabeça dura.
- Não se preocupe, eu estou bem - disse a ele com um sorriso no rosto.
- Você não precisa mentir para mim, Hoshi. - devolveu a ela, sério.
Ficaram um tempo em silêncio vendo as fadas rondando o quarto. Brilhando. Fazendo das paredes brancas um completo arco-íris.
- Melhor você ir. - disse sem olha-lo nos olhos.
Nori deu de ombros. Levantou e foi em direção a porta.
-Eu gostaria muito se você perguntasse o porquê disso. - continuava olhando para o mesmo ponto.
- Eu não me importo de saber o porquê.
- Eu me importo de que você saiba o porquê.
Nori respirou fundo.
- Por que? - virou um pouco a cabeça para olha-la.
- Porque eu sinto que eles já estão chegando... - olhou-o.
- Eles?
- Sim.
- Tsc. Vai ser uma longa noite.
- Boa sorte - dessa vez não sorriu - Queria poder te ajudar... Eu odeio esse hospital... Tão branco.
- Se não tivesse me ajudado, não estaria aqui. - viu que a menina já estava começando a piscar o único olho para não chorar. Suspirou, cansado - Toma, eu quase esqueci - Pôs um botão preto em cima da pequena mesa e saiu porta a fora.
Então, a menina viu o menino de preto andando pelo corendor branco. Ficou olhando para o botão e uma lágrima escorreu pelo rosto.
-E-esse i-idiota, n-nem esperou q... que e-eu a-agradecesse. - Estava soluçando lágrimas feliz e tristes. Brancas e pretas. Coloridas ou não.

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Escritas por uma pessoa que vou chamar de Kiiro Ito. Obrigado.

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Capítulo Cinco - Parte Um - Todestrieb: A pulsão de morte

Capítulo Cinco – Todestrieb: A pulsão de morte



- Quando você vai parar de fazer isso?
- Isso o quê?
- Invadir a minha sala, juntar uma cadeira na minha e comer comigo.
- Você fala como se quisesse que eu parasse, Nori-san.
- Já faz um mês.
- Você conta?
- Mais ou menos.
O caçador pegou um sashimi, o olhou extensamente e o pôs de volta, voltando o olhar à maldita janela.
- Um mês depois, você ainda não mudou nada, Nori-san. – Disse Susumu, pondo os hashi dentro do bentou para evitar perdê-los novamente.
- Eu deveria mudar?
- Acho que sim. Ao menos comer melhor.
- “Comer melhor”?
- Mais coisas. Você ainda é muito magrelo. Ninguém gosta de moleques magrelos demais como você, Nori-san.
- Creio que você não faça parte do grupo de “ninguém” então.
- N-não, eu estava dizendo de verdade! – Disse o rapaz, franzindo as sobrancelhas. – Não, quis dizer, sim, estou nesse grupo de “ninguém”, com toda a certeza.
- Então você gosta de moleques ou então quer que eu ganhe massa muscular. Entendo – Falou, fechando o bentou e pondo os pés em cima da mesa.
- Você e-está entendendo tudo errado, Nori-san...
- Então me explique.
- Você deveria parar de ficar me provocando!
- Oh, então te provoco – Murmurou ele, com um ligeiro sorriso de canto de boca. Então, levantou os olhos para o relógio e disse: - Uma e quarenta. Vou para casa.
- Já?
- Sim. – Falou, se levantando, guardando o bentou na mochila e a pondo transpassada. – Nos vemos amanhã?
- Mais tarde.
Nori ficou em silêncio, com uma sobrancelha levantada.
- Às sete.
Deu de ombros e foi até a porta, ficando de costas para ele.
- Certo, Nori-san?
Mais silêncio.
- Se Himura-san começar a reclamar, as coisas ficarão feias para mim.
- Ei, não é minha culpa se você arranjou um amigo.
- Não se faça de inocente, Susumu-kun.
- Não estou. O que eu disse de errado?
A terceira ocorrência do silêncio terminou com o caçador batendo a porta e andando pelo corredor. O outro rapaz abriu a porta, viu-o indo descer as escadas e correu atrás dele, alcançando-o quando ele estava descendo o último degrau e segurando seu ombro.
- Não me deixe sem respostas, Nori-san!
Susumu ouviu um suspiro muito pesado e sentiu sua mão ser gentilmente estapeada para longe. Franziu as sobrancelhas e tentou de novo o impedir de ir embora, mas este novamente o estapeou e, sem ao menos o olhar nos olhos, continuou descendo as escadarias.
Por que ele estava o ignorando assim?
Digo, ele sempre costumara o ignorar, mas isto não era meio... Demais?
Será que algo estava para ocorrer?
Desconfiado, o seguiu até a entrada do colégio.
Em vez de ir para a direita, como ele sempre ia, ele foi para a esquerda...
Para a esquerda ficava a estação do bonde.
Mas não era dia dele ir para a clínica.
Hm...
Talvez ele fosse comprar algo?
Quem sabe...

Ficou lá parado por um bom tempo, encarando a rua por onde Nori havia seguido. Ignorou que havia sido ignorado por alguns de seus colegas de classe e continuou pensando, ponderando e imaginando, até que ouviu uma voz de garota lhe chamar:
- Ei, você é aquele tal Nakahara-san, não é?
- Hm? Eu? – Disse Susumu, olhando para baixo e a vendo. – Sim, sou. Por quê?
- Amigo do Kurosawa-san, não?
- Sim...
- Onde ele está, pode me dizer?
- Acabou de sair.
- Oh, que pena... Por onde ele foi?
- Me perdoe, mas por que você quer saber? Quem é você? – Perguntou o rapaz, levantando uma sobrancelha.
- Ei, não lembra de mim?
- Não... Eu deveria?
- Eu salvei sua vida e você não lembra?! – Berrou a garota, indignada, pondo as mãos na cintura.
- Hn... Me perdoe, mas...
- A criadora!
- AH! Sim! A criadora! – Disse Susumu, levando a mão à testa, mesmo sem exatamente se lembrar dela. – Aquela menininha de um mês atrás?
- Sim!
- Que invocou o Shiawase?
- Sim!
- Que fugiu para nunca mais ser vista?
- Si- Eu não fugi!
- Aposto que não.
- Não seja rude comigo, eu salvei a sua maldita vida – Disse ela, com uma careta de desgosto no rosto. – Eu só quero saber onde está o Kurosawa agora!
- Acho que foi pegar o b- Qual o seu nome, menina? Não deveria estar na escola? Cadê seus pais? Quantos anos você tem?
- Hn! – Fez ela, claramente incomodada. – Meu horário na escola acaba uma e vinte, meus pais estão em casa, eu tenho treze anos e meu nome é Akiyama Hoshi!
Susumu engoliu seco ao ouvir o sobrenome dela.
- Akiyama.
- Sim!
- A-akiyama.
- Qual o problema?
- Você é parente daquela tal Yuzuki-kun?
- Ela é minha prima em décimo segundo grau ou algo do tipo, acho. Agora, hora de responder as minhas perguntas, para onde ele foi?
- A-acho que para o bonde...
- Oh, sim! Ele deve ter ido para a mansão.
- Por que ele iria para lá?
- Hoje é um dia especial! – Disse ela, dando de costas e andando.
- Especial? – Perguntou o garoto, a seguindo.
- Sim! Fui mandada para lembrar a ele que ele precisava estar lá há meia hora. Me falaram que ele sempre perde os horários e acho que é verdade.
O garoto evitou comentar o motivo dele estar atrasado e prosseguiu a seguindo.
- E por que hoje é um dia especial, afinal?
- Primeiro, hoje começam os três dias de féria dos caçadores homens. – Falou ela, fechando os olhos e levantando o queixo.
- ... E por que só dos homens, se existem caçadoras mulheres?
- Longa história. Segundo que hoje temos visitas.
- Visitas?
- Sim.
- Que tipo de visitas?
- Dois caçadores do sul virão para nos ajudar.
- Do sul? Quer dizer, de Nagasaki?
- Não.
- De onde? Da... China?
- Passou longe.
- Hm... Coréia?
- Não.
- Austrália?!
- Pare de tentar!
- Então me diga!
- Por que quer tanto saber? Você nem caçador nem criador nem pacificador é.
- Bem, sou amigo de um. E além do mais, se até os pacificadores estão lá, mais um motivo para eu invadir. – Sorriu o garoto, levando a mão à boca. – E, hm, Akiyama-san, acho que devo te agradecer por ter salvo minha vida...
- Não precisa agradecer! Eu faço isso porque gosto, não sou obrigada a nada. E, ei! – Disse ela. – Você não pode vir comigo.
- Por que não?
- Porque não foi convidado.
- Então vamos fingir que eu cheguei lá sem querer. Certo, pequena?
- Não sou pequena.
- Claro que não. – Falou Susumu, acelerando o passo e pondo-se a correr logo depois. – Nos vemos lá, Akiyama-chan!
- Não me chame de-

Antes dela terminar o “-chan”, ele virou uma esquina e sumiu.
E a garota se viu sozinha, andando ainda em passo normal, de sobrancelhas franzidas e morrendo de vontade de encontrar aquele moleque de novo para lhe dar um chute na canela.

Mas, ei, não seria tão ruim. O máximo que aconteceria seria invadir uma reunião de caçadores e afins e ser perseguido até o fim do mundo. Valia a pena, não valia? Se pudesse encontrar Nori, Minoru e ainda os dois caçadores misteriosos, seria melhor ainda. Adoraria ver a cara dele ao encontrá-lo novamente. Agora, qual era a linha, mesmo? E o ponto? Não demoraria mais de meia hora, demoraria? Hm... Tinha que se lembrar. Se fosse parar em Otaru porque se confundiu com alguma coisa, não iria nunca se perdoar e lembraria daquilo para sempre, e provavelmente Nori também lembraria, o que definitivamente seria pior.
E como seriam os tais caçadores do sul?
Será que algum kanjou apareceria enquanto eles estão todos juntos?
E se-
Ah, o ponto!
Saltou antes que pudesse ficar perdido e olhou em volta – Um monte de carros – Carros? – Parados – Esses caçadores deviam ser mesmo ricos – Mas nenhum barulho vindo de dentro da residência. Deu de ombros e passou pelos portões, estranhando que não houvesse nenhum porteiro ou algo do tipo, e chegou na porta principal, onde aí sim estavam plantados dois criados que não lá pareciam muito assustadores ou ameaçadores.
O que parecia assustador e ameaçador agora, de qualquer jeito?
- Ei, garoto. Aonde vai?
- Encontrar um amigo.
- Que amigo?
- Um garoto.
- Oh. Qual dos cem?
- Um que não é um Akiyama.
- Acho que fala do rapaz Kurosawa, não?
- Exatamente – Disse Susumu, olhando para os lados. – Posso entrar?
- Não.
- Por que não?
- Estaria interrompendo a reunião de família.
- Reunião de família, psh – Fez ele, levantando uma sobrancelha. – Não fale como se eu não soubesse o que ocorre. Está vendo essa cicatriz? – Disse, afastando o cabelo do rosto e revelando uma em linha que passava por cima de sua sobrancelha esquerda. – Foi de quando eu fui atacado por um kanjou e salvei a vida desse tal rapaz.
O homem olhou para o outro, que até então mantinha o olhar fixo na entrada, e voltou os olhos para Susumu.
- Ainda assim não pode.
- Por que não? – Perguntou ele, ligeiramente mais zangado.
- Deve ter ouvido que esta é uma reunião para tratar os assuntos da família. Você faz parte da família?
- Não, ma-
- Então vá embora.
- Eu quero ver Nori-san!
- Problema que você queira ou não queira ver, eu disse vá embora.
- Mas eu não-
- Vou precisar invocar algo para você ir embora?
Susumu franziu as sobrancelhas, olhou para baixo, para o alto e encarou o criador na sua frente, abriu a boca, puxou o ar, pensou em desistir e puxou o ar de novo, dizendo:
- Eu n-
Foi cortado pelo curto e grosso:
- Vá embora.
Do criador.
E ele realmente suspirou, baixou a cabeça, virou e ia embora, até ver, ao longe, parado no meio do portão, o rapaz que tanto procurava, mas...
Como diabos ele...
Como ele...
Nori fez um sinal com a cabeça para que viesse e Susumu obedeceu, olhando ainda o criador. Encontrou o rapaz com um espetinho de frango – Um yakitori – Semi-comido na mão, encarando-o e soando ligeiramente confuso.
- O que está fazendo aqui, Nori-san? – Perguntou o garoto, olhando para trás mais uma vez. – Deveria estar lá dentro.
- Hm... – Fez ele, mordendo mais um pedaço do espetinho. – Deveria?
- Sim! É hoje a reunião, não é?
- É?
- Como você consegue ser tão desleixado?
- Sou? – Perguntou, coçando o rosto e olhando para baixo. – Eu esqueci. Realmente esqueci. E você? Como sabe e o que está fazendo aqui?
- Aquela criadora, acho que era uma tal Akiyama Tsuki-
- Hoshi.
- Isso mesmo. Então, como eu ia dizendo, ela me encontrou lá no nosso colégio, estava te procurando. Disse que falaram que você sempre se atrasa para as reuniões – Falou, e viu que Nori havia ficado um pouco tenso.
- Gut – Disse, fazendo soar mais um “gutto” sussurrado. – Não explica como você chegou aqui.
- Estou chocado, Nori-san presta atenção nas aulas de alemão.
- Sim, eu presto. Um pouco. Como veio parar aqui?
- Eu queria entender essas línguas germânicas. Saxônicas, acho.
- Como diabos veio parar aqui?
- Mas acho que me dou melhor com as nossas, mesmo. Vou muito bem em chinês – Prosseguiu ele, sorrindo, desafiante.
- Vou perguntar uma úl- Ah, esquece. Com licença. – Falou, empurrando Susumu para o lado e indo na direção da residência, sendo parado pelo mesmo rapaz o puxando de volta.
- Ei, eu estava brincando!
- Então me solte e me responda. – Murmurou, ainda fazendo força para frente.
- Eu vim aqui para te encontrar, Nori-san! – Disse, largando-o e não segurando o riso quando ele ficou tão atordoado que quase caiu no chão. – Achei que gostaria de companhia. E Himura-san, está aqui?
- ... Provavelmente – Falou Nori, recompondo-se, então terminando de comer o yakitori e pondo o espeto dentro da bolsa. – Então você veio aqui mesmo sabendo que não iria entrar porque achou que eu ia sentir falta de companhia?
- Por que não?
Os dois ficaram calados por alguns momentos, Susumu sorrindo – Adorava desafiar ele daquele jeito, ele ficava tão adorável zangado – E Nori com as sobrancelhas fortemente franzidas, como se não acreditasse. Quando este se mexeu e não foi na direção da residência, o garoto soube que havia feito algo de correto.
- Acho que tem razão – Disse Nori, sentando-se no meio-fio.
- Não vai entrar?
- Por que iria?
- Porque hoje começam suas férias de três-
- Psh. Não as minhas. – Cortou ele.
- O quê?
- Não-as-minhas.
- Você se chama Noriko então?! – Perguntou, parecendo abismado.
- Tanto quanto você se chama Akane. Acontece que eu não sou ligado a nenhuma caçadora que vá sangrar agora. – Disse ele, como se fosse a coisa mais natural do mundo.
- ... Hã?
- Quando uma caçadora tem sua regra, é como um período de purificação em que elas renovam as energias e ficam mais fortes, com essa energia extra caindo até o fim da próxima lua, quando elas sangram de novo, e todas o fazem no mesmo dia. Não sabia? Bem, agora sabe. E acontece que cada caçador está ligado a uma caçadora para essa lei ser aplicada. Eu estou ligado a Yuzuki-kun.
- E ela não... Por que não?
- Porque ela nunca teve a regra regular. Eu preciso esperar até que aconteça, o que demora um pouco, e aí tenho um dia de descanso.
- Por que não três?
- Você acha justo deixar os kanjou de dois no ombro de uma pessoa só?
- Não, mas...
- E mais, quanto a entrar, eu não sou da família.
- Hã?
- Sou um Kurosawa.
- Eu achei que... Mesmo assim você fosse da família.
- Não sou.
- Não pode entrar?
- Não é questão de entrar ou não. É só que minha preseça não é requisitada, se é que me entende.
- Você não é querido lá.
- É.
- Ouch. Deve ser ruim. E Himura-san?
- Himura-san não se importa com isso. Já comigo é só que... É incômodo.
- E os tais caçadores do sul? – Perguntou Susumu, abrindo um sorriso para quebrar o clima tenso.
- Aparecerão.
- De onde eles vêm?
- Você verá.
O garoto girou os olhos. Que mistério estúpido aquele que estavam fazendo!
Abraçou os joelhos e ficou olhando Nori cutucar os espaços entre os paralelepípedos com o graveto do yakitori.
Abriu a boca uma dúzia de vezes para falar algo, mas logo desistiu – O rapaz estava realmente concentrado em incomodar as formigas e insetos que passavam, e não tinha coragem de interrompê-lo daquele jeito. Em certo momento, ele largou o palitinho e abraçou os joelhos, olhando o nada, claramente entediado, até que Susumu se irritou, se levantou e se espreguiçou.
- Quando o encontro termina?
- Não sei.
- Que saco está isso. Não quer ir andar?
- Pode ser.
Sorriu ao ver o outro se levantar, mas perdeu o sorriso quando ele pareceu desistir e se sentou de novo.
- Que se passa?
- Nah.
- “Nah”?
- Perdi a vontade.
- Hã? Como assim?
- Perdi a vontade... Vou esperar.
- E ficar aí parado, esperando?
Ele balançou a cabeça afirmativamente.
- Você é esquisito.
- Eu sei.
Mais silêncio. Susumu suspirou e cutucou-o com o pé, apenas para ver que ele começara a o ignorar novamente, e precisou de mais dois cutucões para perceber que ele estava, na verdade, dormindo.
Bufou. Ele não PODIA estar falando sério.
Pensou em chutá-lo para o meio da calçada e até levantou a perna para o fazer, quando ouviu alguém gritar:
- Ei, o que você acha que está fazendo, moleque?!
“Moleque”?
Era Minoru?
Não... A voz era diferente... Era uma mulher. E o sotaque...
Virou o olhar para a fonte da bronca e quase caiu no chão, tamanho susto tomara.
- Deixe-o em paz! O que pensa que está fazendo? – Repetiu ela, pondo as mãos na cintura.
- Eu queria... Acordá-lo.
- Desse jeito?!
- Me perdoe! – Disse ele, encurvando-se e se afastando alguns passos. – Eu nunca quis...
- Você o conhece?
- Sou um amigo dele. E-e você?
Observou a moça ir até o Kurosawa e balançá-lo até que ele acordasse, assustado, e se levantasse, bocejando. Ele a encarou de cima a baixo, sorriu um pouco e apertou-lhe a mão, dizendo:
- Achei que não iria conseguir te ver, Hamaryo-san. Como foi a reunião?
- O de sempre. Nada de muito novo. Por que não estava lá?
Ele deu de ombros.
- Bem, não perdeu muito, ainda assim.
- Você vai ficar até quando aqui?
- Uma semana ou duas.
Susumu continuou assistindo aquilo embasbacado.
- Oh. Entendo. E seu esposo?
- Não pôde vir. Está ocupado com as coisas do banco...
- Fico feliz que as coisas estejam indo bem lá.
- Mais ou menos. O café está começando a empacar, as pessoas estão começando a retirar dinheiro adoidadamente...
- Ei!
Viraram-se para o rapaz, que parecia indignado.
- Quem é você, afinal? – Perguntou, apontando para a moça.
- Uma caçadora.
- De onde?
- Do sul.
- DE ONDE?
- Conhece um país chamado Brasil?
- Oh! Sim! Algum parente meu de décimo quarto grau foi trabalhar lá. Você é de lá? Por isso tem esse sotaque e essa cor de pele? E o seu nome é... Hamaryo?
- Sobrenome.
- ... Oh. – Fez ele, sabendo que talvez não conseguiria extrair tanta informação dela assim, de repente. – E você conhece Nori-san porque...
- Eu sou uma caçadora, sim? Preciso ter meus contatos em todo o lugar – Disse ela, puxando uma piteira da bolsa e acendendo um cigarro. – E Nori é um rapazinho muito bom, eu gosto dele. – Falou, e Susumu franziu as sobrancelhas ao ouvir o nome do outro sem um “-san” ou “-kun”. – E já que estamos nesse assunto, e o presente que meu marido te deu, Nori? Ainda está inteiro?
- Mais ou menos – Disse ele, bocejando. – Não tenho com quem jogar, então...
- É que eu trouxe outro para você – Falou a moça. – Só que não está comigo agora. Sabe onde é o hotel Tsutsuji? Eu estou hospedada lá. Passe lá mais tarde, sim?
Ele concordou com a cabeça, ela acenou para os dois e pôs-se a andar, sumindo da vista de ambos.
Após um silêncio constrangedor, Susumu levantou os olhos para o outro rapaz e perguntou:
- Quem era ela, afinal?
- Uma amiga minha que vive do outro lado do mundo.
- Elabore, Nori-san... – Suspirou. – Estávamos aqui quando de repente ela surge e vai embora em um piscar de olhos. Ela é uma caçadora como você? Tem um clã?
Nori pensou por alguns momentos, olhando em volta, e provavelmente pensou em deixá-lo abandonado lá, mas deu de ombros e falou:
- É uma longa história.
- Então pode desembuchar, temos o dia todo.
- Psh. Insistente. Sim, o sistema de caçadores é o mesmo no mundo todo: Uma família em especial que mantém esse poder desde o começo dos tempos e forma um clã de caçadores, pacificadores e criadores. Susumu-kun, eu realmente preciso explicar tudo para você? A história é diferente da nossa. Enquanto aqui nossa sociedade foi evoluindo sem a interrupção externa, a do mundo é diferente. Os ancestrais de Hamaryo-sama eram os grandes caçadores da região sudoeste da África; você sabe onde fica a África? É um continente enorme, seu idiota.
- Eu sei onde fica a África e não precisa procurar motivos para me ofender gratuitamente, seu idiota.
- Não parece e eu não preciso procurar motivos para te ofender gratuitamente, você mesmo é uma piada ambulante, Susumu-kun. Posso prosseguir a história?
- Eu nunca te impedi disso, você é que cisma comigo, babaca.
- Creio que seja o contrário, palhaço. Então, com a escravização, os ancestrais dela foram levados para este Brasil, forçados a trocar de nome inúmeras vezes, provavelmente se envolveram com caçadores nativos e portugueses e agora não há um grande clã em nome e sim várias famílias separadas, mas unidas por sangue, espalhadas por todo o território americano. Entende?
- Então os Hamaryo não são o clã de caçadores de lá?
- Você não prestou atenção no que eu disse. – Falou Nori, com uma expressão de desprezo tão grande que o outro rapaz conseguiu sentir medo.
Susumu virou os olhos, suspirando.
Ele era tão difícil de se lidar com...
- Tá. Vamos tentar outra coisa. Qual foi o presente que o marido dela te deu, por pura curiosidade?
- Oh? – Fez o caçador, se sentando no meio-fio de novo, e pela primeira vez Susumu reparou nas meias cinzas que ele usava, que apareciam quando a calça levantava um pouco. – Ah, uma bola de futebol.
- Você gosta de futebol, Nori-san? – Perguntou ele, pasmo.
O garoto balançou a cabeça afirmativamente.
- Nunca me contou...!
- Você nunca perguntou.
- Eu achei que era o único!
- O que você quer de mim?
- Hm?
- Você quer algo. O que é?
- Eu nã-
- Fale logo. – Disse ele, encostando a cabeça nos joelhos.
- Beeeeeeem... Agora que você revelou que gosta de coisas que eu gosto também, por que nã-
- Não.
- Hã?
- Não vou jogar futebol contigo.
- Por que não?
- Porque não se joga só com dois.
- Nem tentar? Eu quero te humilhar em outra coisa além de shogi e natação.
Silêncio.
Nori levandou o dedo médio para o garoto, que riu.
- Viu? Você acha graça...
Mais silêncio.
Será que ele havia realmente se ofendido?
- Nori-san?
- Que é?
- Ficou calado de repente...
- Você está muito mal acostumado. Acho que vou voltar a te ignorar – Disse, virando o rosto para o outro lado.
- Ah, pelo amor, não vá começar com isso de novo, Nori-san. – Bufou o garoto, sentando-se ao seu lado. – Que horas a reunião termina, mesmo?
Ele deu de ombros.
- Imagino o que você saiba. – Falou Susumu, perturbado. – Você é meio alheio a tudo, não é?
- Hmhm.
- Por que?
- Por que eu não seria alheio a tudo?
- Porque você está imerso nesse mundo? Olhe, Nori-san, é como se aqui fosse um colégio, tá? Deixa eu me explicar, não me olha desse jeito. Se você não prestar atenção em nada, coisas ruins ocorrem. Entendeu?
De novo, deu de ombros.
- Nori-san, você me incomoda profundamente.
Na segunda vez que ele repetiu o ato, Susumu levou a mão à testa e se levantou.
- Tudo bem, eu vou embora, já que é isso que quer.
- Vai pela sombra.
- Não acredito que você está realmente me dispensando assim.
- Você falou que ia embora, eu estou te desejando uma boa ida – Disse Nori, bocejando.
- Você é muito, mas muito, mas muito desagradável, sabia? – Falou o rapaz, se espreguiçando.
- É o que costumam me falar...
Silêncio.
Susumu bufou e chutou um papel amassado em formato de bola, pondo as mãos nos bolsos; olhou para o céu, para a casa dos Akiyama e, quando voltou o olhar para o teimoso estúpido metido, viu que ele estava o encarando, concentrado.
Passou a mão no rosto, tentando achar o que havia de tão errado assim para ter dois olhos pretos grudados nele.
- O que é?
- Só estou te olhando – Disse ele, piscando.
- Por qual motivo?
- Preciso ter um?
- Geralmente sim, Nori-san. Está esperando eu ir embora?
Quatro vezes.
Quatro vezes que ele dava de ombros.
Estava o irritando.
Então iria jogar o jogo dele, sim?
Encarou-o, sem piscar, e suprimiu o sorriso quando ele perguntou:
- E você?
- Hm?
- Por que está me olhando?
- Preciso de um motivo?
Ele sorriu e Susumu teve que se assustar.
- Tudo bem – Ele disse, ainda sorrindo, e encostou a cabeça nos ombros, ainda o olhando. – Mesmo que você seja um palhaço psicopata perturbado e me persiga até a puta que pariu, você é parcialmente suportável.
- Quer dizer que gosta de mim. – Arriscou.
- Hm?
- Gosta de mim, Nori-san.
O caçador franziu as sobrancelhas e perdeu o sorriso.
- Por que pergunta?
- Não perguntei, Nori-san. Afirmei.
Novamente levantou o dedo do meio e virou o rosto.
- Ah, por favor. Você sorriu pra mim, disse que eu era suportável, não me ignora nem me repele como mês passado, me deixa ir na sua casa, eu já te levei para o hospital e-e Nori-san, aonde vai?!
- Para casa, Himura-san volta sem mim – Falou ele, ajeitando os sapatos e acenando para ele. – Te vejo mais tarde.
- Oh, não vai! Nori-san, seu babaca enorme, fique aqui e encare o que estou dizendo feito um homem! – Berrou, o puxando pelo gakuran.
Ele não avisou – Só se virou com a mão em punho e parou a dois centímetros da bochecha de Susumu.
E este não percebeu e nem deixaria ele chegar perto assim sem apanhar junto, e realmente deu um soco no rosto do caçador.
Ele cambaleou para trás, pasmo, e limpou, com as costas da mão, o corte em seu lábio superior.
Silêncio.
Susumu já estava quase desistindo – Ia se jogar aos pés dele e implorar por desculpas, que fora só reflexo, mas perdeu toda a coragem de ser miserável quando ele começou a rir.
Espere...
Havia algo de errado.
Ele era um masoquista maluco assim?
Rindo...
Era a primeira vez que via ele rir.
E rindo alto.
Meu Deus.
Queria correr para o mais longe possível. Havia algo de muito errado.
- Você está ficando u-um pouco menos idiota, Susumu-kun – Disse o caçador, enxugando as lágrimas que haviam saído depois da crise de riso. – Estou bobo...!
O garoto pensou em responder, mas ele prosseguiu:
- E não é tão fraco quanto eu pensei!
Àquela altura, os dois criadores que tomavam conta da casa já haviam se aproximado do portão, olhando o que havia acontecido.
- Nori-san, você... Você está bem?
- Estou, estou – Disse, parando para respirar. – Foi só... Engraçado.
- Engraçado?!
- Sim!
Ficou sem resposta, só o encarando até voltar ao normal, mesmo que ainda sorrindo – Certo, então talvez ele não estivesse tão normal – E agitado.
- Não vi graça alguma, Nori-san... – Murmurou ele.
Ele se recostou na parede perto dos criadores, cruzou os braços, riu um bocado e voltou a o encarar.
- Então, Susumu-kun, o que fazia, mesmo? Ia embora?
- Não, seu grandessíssimo babaca – Disse o garoto, batendo o pé. – Eu disse que...
Ia terminar com um “você gosta de mim”, mas lembrou dos dois homens que ainda o encaravam – A Susumu, não a Nori, como se o maluco fosse o normal e o normal fosse maluco por tê-lo feito rir – Aquele filho da puta havia calculado tudo então? – E calou a boca.
- Eu quero falar contigo em particular, Nori-san. – Prosseguiu, bem mais tímido agora.
- Oh, vai dar uma bronca em mim?
- Exatamente – Sussurrou, com as mãos em punhos. – Eu vo-
- Vai o que, moleque?
- Himura-san, eu já disse que é “Susumu”! – Berrou.
O médico o encarou, estranhando, comentou uma ou duas coisas com os criadores e saiu da residência, segurando o casaco do terno em uma das mãos.
- O que está fazendo aqui?
- Eu? Achei que Nori-san iria querer companhia – Falou, franzindo as sobrancelhas.
- Oh. – Respondeu Minoru, de sobrancelhas igualmente franzidas. – Você acha muitas coisas. Achismo não muda o mundo, moleque.
- Blábláblá – Rebateu Susumu, mostrando a língua.
- Está estressado por algo?
- O SEU Nori-san está sendo um filho da puta comigo sem motivo algum mesmo depois de eu ter feito ele rir. Ah, também, ele é um masoquista. Tomou um soco e achou graça.
Minoru levou os olhos para Nori, que assobiava uma canção qualquer e já estava de volta com a cara de nada, e então para Susumu, que estava obviamente o desprezando do fundo de sua alma, e para Nori de novo, e puxou o caçador e o rapaz pelos pulsos, como se fossem duas crianças idiotas brigando por brinquedos.
- Vocês não sabem ficar nem meia hora sozinhos sem brigar? – Disse ele, olhando feio para ambos. – E Nori, por que não entrou?
- Não quis.
- Só isso? “Não quis”? Muito bonito, hm?
- O que teve de importante lá?
- Em casa eu explico. Eu vou te deixar em casa, sim, Susumu-kun?
- Por que? Você me acha uma criança? Sou tão velho quanto Nori-san, sabia?
- Porque agora vamos fazer negócios, moleque, e você realmente não vai querer estar lá.
Olhou estranho quando Susumu fez a maior cara de nojo ou surpresa que ele já havia visto e Nori desviou o olhar, envergonhado.
- E-eu acho que realmente não v-vou querer estar lá – Murmurou o garoto.
- Não, seu idiota, eu nã- Eu nã- Vamos discutir o que foi passado na reunião, só isso!
- Oh, eu assim espero – Prosseguiu, olhando para baixo. – Não me incomodo de estar lá se for assim, claro.
- Mas eu me incomodo!
- Vai fazer negócios reais com Nori-san, seu pederasta?!
- N-não é isso, e para quê você quer saber, moleque?!
O caçador não pôde fazer nada além de fingir que não ouvia.
Mas, finalmente longe daquele lugar...
Já era um alívio, sim?














- Ei, Nori-san. Nori-san, está me ouvindo? Nori-saaaaan? – Falou Susumu, cutucando-o na bochecha. – Himura-san, ele não quer acordar! Será que morreu?
- Deixe-o dormir, Susumu-kun!
- E quando essa comida sai? Você cozinha bem feito ele, né?
- Não, já disse, e vai ser algo simples por causa disso, e você está começando a aumentar as despesas aqui de casa.
- Nori-san, Nori-san, Nori-san, Nori-san, Nori-san, Nori-san, Nori-san...
- Deixe-o dormir, já diss!
- Nori-saaaaaaaan, preciso falar contigo, Nori-san, Nori-san, Nori-san, Nori-as-
Recebeu uma mãozada na cara.
- Nori-san, acordou! – Disse, animado, com a voz abafada pela mão do caçador.
- Você me incomoda... – Murmurou o rapaz, com a voz pastosa de sono, pondo uma almofada por cima da cabeça, atingindo a dele no processo.
- Eu preciso falar contigo! Você chegou e foi dormir, mas que saco.
- Falar o quê...?
- Coisas em particular, Nori-san. Está disposto a me ouvir?
- Cinco minutos...
- Você não vai poder adiar isso pra sempre, sabe?
- Oh, tem razão – Disse ele, se sentando, passando as mãos pelo rosto como se para acordar de verdade. – Preciso ir lá na tal hospedaria onde Hamaryo-san está. Himura-san, volto em uma hora!
- O QUÊ?!
- Não grite, Susumu-kun, eu preciso ir mesmo, ela me chamou – Disse Nori, se espreguiçando. – Himura-san, me ouviu? Guarde um pouco do que sobrar para mim, por favor!
- Nori! – Berrou Minoru, aparecendo da porta da cozinha e puxando o rapaz pela gola do gakuran, o jogando de volta no sofá. – Não, não vai, você sai sempre assim aleatoriamente e me deixa sozinho, hoje vai ficar aqui e vai comer a maldita janta e não vai voltar tarde da noite. Eu preciso conversar contigo sério, Nori, então fique aí e coma, certo?
- Então tenho duas conversas sérias para hoje ainda? – Perguntou o rapaz, olhando-o ligeiramente assustado, e voltando o olhar para Susumu. – Não é demais para uma pessoa só?
Susumu abriu a boca para falar algo, mas Minoru logo o cortou, puxando uma cadeira, apoiando os pés em um dos braços do sofá e suspirando.
- Você está começando a perder foco, Nori, e agora é quando mais precisamos de foco.
- Oh, por favor, não sou eu que vou ganhar três dias de férias a custo das caçadoras. – Bufou ele, recostando-se em Susumu, que franziu as sobrancelhas.
- Está perdendo foco! – Disse, mais alto. – Passou a se largar por todos os cantos e esquecer de fazer o que deve fazer. Prefere ficar conversando a fazer o que precisa.
O caçador fechou a cara e escorregou ainda mais contra o garoto, agora com a cabeça em seu cotovelo.
- Olhe só. Já está com essa cara. Sabe como isso vai acabar, Nori?
- Sei.
- É só assim que me responde? “Sei”?
Não houve resposta.
E Nori já estava com a cabeça no colo do outro rapaz, e Minoru estava cada vez mais zangado.
- Amanhã eu não quero saber de você saindo a não ser para ir caçar.
- Hm? – Fez Susumu, levantando os olhos para ele.
- Eu já tenho dezesseis anos, Himura-san. – Falou Nori, ligeiramente mais puto.
- Não é adulto, eu ainda sou seu responsável e digo que você não vai sair até voltar ao que era antes. Além do mais, suas notas estiveram caindo. Quero ver você estudando, não quero saber de notas abaixo de oito.
- Por que essa súbita mudança de comportamento, Himura-san...? – Perguntou ele, abraçando a cintura de Susumu enquanto olhava nos olhos do médico.
O moleque se espantou com a súbita aproximação, mas pôs a mão na cabeça do caçador e a acariciou uma ou duas vezes, com o coração na boca.
Sabia que estava sendo usado...
Sabia que aquilo era só um jeito de Nori criar ciúmes e se satisfazer com o sofrimento alheio e que ele nunca faria isso caso não estivesse irado com Minoru.

Estava enojado e enjoado.

Mas até que gostava da expressão de asco do médico, que crescia a cada vez que passava os dedos pelos cabelos embaraçados de Nori.
Ele realmente parecia zangado a ponto de o expulsar daquela casa...


Espere, espere, não podia fazer isso.


Nori era mesmo um filho da puta.
Estava o evitando e agora estava o abraçando daquele jeito...

- Nori-san, não acho que-

Foi interrompido por ele apertando ainda mais sua cintura, como se o mandasse calar a boca.

- Himura-san, você ainda não me respondeu...
- Eu quero o seu bem – Disse ele, como se tivesse desengasgado a resposta. – Só isso.
- É um problema, não é? O meu bem implicaria diretamente no mal a todos os outros.
- Nori...
- Tudo bem.
Com aquilo, Minoru se levantou com tamanha violência que derrubou a cadeira.
- Você é muito, mas muito arrogante, Nori! Acha que eu vou deixar você ficar de mimimi e dizendo que está tudo bem para tentar passar uma imagem superior, moleque?!
Susumu sentiu ele o apertar mais uma vez.
- Não é isso. Eu só quero que você me diga que há algo de muito errado comigo e que eu preciso mudar para que os kanjou não saiam atacando a tudo e a todos...
- Eu já disse isso, seu babaca mirim, mas você estava distraído demais com ele.
- Não tente disfarçar dizendo que é para o meu be-
- Hm?
- Nada.
- Nori, dá para falar?
- Não é nada.
- Vou quebrar seu pescoço.
- Pode quebrar. Não faz ma-

Em um momento, Nori estava deitado em seu colo...

No outro, estava no chão, e quase havia o levado junto?!
Espera, Minoru tinha mesmo quebrado o pescoço dele?!

- Você precisa aprender algumas coisas, molequinho. – Sussurrou o médico, soltando os cabelos dele. – Você é realmente irritante; por que você não ao menos tenta ser mais feliz ou algo do tipo, ao menos lutar pelo seu bem-estar, qualquer coisa do básico da sobrevivência?! – Falou, pisando na cintura do caçador, e Susumu viu que ele realmente fez força antes de tirar o pé dele. – Eu já te disse isso tantas vezes, por que você não reage...?!
- H-Himura-san, pare, por favor – Murmurou Susumu, se levantando. – Por favor!
- Vá para casa, isso é um assunto meu e dele, só – Falou, levantando Nori por debaixo dos ombros e o jogando sentado no sofá, feito um boneco de pano. – Você vai me ouvir agora, moleque. Por bem ou por mal, você vai precisar reagir.

O caçador franziu as sobrancelhas, passando a mão onde havia sido pisoteado.

- Himura-san, por favor, n-não há outro jeito de consertarem isso? – Perguntou Susumu, se levantando.
- Vá para casa, eu já mandei.
- Eu não...
- Vá para casa, Susumu-kun.
- Mas...

Virou o rosto para Nori – Ele continuava de cara feia, mas o olhou e aquele olhar quase dizia “você não vai embora, vai?” ou “fique mais um pouco, por favor” – E para Minoru.
Se fosse, o caçador iria apanhar ou coisas muito piores, certo?
Então, não podia ir, certo?
Ele era a única coisa que protegia Nori, certo?

Que irônico!

E não era a primeira vez que ele fazia isso...!

Então era, essencialmente, quem decidiria se ele ia aparecer com outro olho roxo no dia seguinte ou não?

- Eu vou ficar aqui, Himura-san.
- Hm?
- Não posso deixar ele aqui...
- O que quer dizer?
- Bem...
- Terei que tomar atitudes drásticas se você não sair, Susumu-kun. Quer, por algum acaso, que eu corte logo os laços entre vocês dois e fale com seus pais?

Sentiu o coração ficar pesado. Ele não podia fazer... Isso, podia?

- M-me perdoe – Disse Susumu, abaixando a cabeça e olhando o caçador, que arregalara os olhos, de canto de olho. – Me perdoe – Repetiu, e não teve certeza a qual dos dois esse pedido se digiria.
- Se eu puder abusar da sua boa vontade, Susumu-kun, não volte mais aqui.
- O-o q-q-quê?! – Gaguejou, horrorizado, sentindo as mãos tremerem.
- OK. – Falou, levantando dois dedos. – Duas semanas, então. Eu realmente odeio atrapalhar a amizade de vocês, mas é para o bem de ambos. Então, agora, vá embora e vá pela sombra.

O rapaz deu um passo para frente e teve seu pulso segurado por Nori, que estava mais que obviamente desesperado.
Ficou exatos onze segundos que pareceram uma eternidade olhando para ele, até que se desvencilhou e saiu pela porta que Minoru segurava aberta, querendo virar o rosto uma última vez para vê-lo, mas sem coragem de o fazer.

Ao ouvir a porta sendo batida logo às suas costas, abaixou o rosto e se sentou na soleira, abraçando os joelhos.

Com a respiração pesada, não querendo chorar por algo tão idiota – Ora, só não veria Nori direito por duas semanas seguidas e quando voltasse, ele provavelmente estaria tão mudado que não o reconheceria – E com os olhos já embaçados, os fechou e trincou os dentes ao ouvir Minoru falando alto.
Enxugou a umidade em seus olhos e puxou todo o ar que podia ao ouvir um grito de susto e provavelmente dor, tampando as orelhas também.

Levantou-se e foi embora, querendo ficar o mais longe possível daquilo, já que não podia fazer nada...


Em casa, sentiu-se desolado.
Fez os deveres, arrumou o quarto, se deitou na cama e ficou pensando...

Quando seus pais tentaram perguntar o que havia de errado, ele desconversou.

Tentou dormir, mas, quando o relógio marcou duas da manhã, decidiu parar de se martirizar e ficar apodrecendo.
Sentou-se na cama, pôs os zouri e começou a andar pelo quarto, parando quando viu que estava apenas indo em círculos. Suspirou, levou a mão ao rosto e foi até a janela, quando notou que ela o lembrava de Nori, e quis se distanciar dela para que as memórias não voltassem e voltasse a ficar triste.
Mas algo o chamou a atenção.
Às duas da manhã, uma pessoa parada logo debaixo do poste de luz do outro lado da rua?

Ficou a encarando por alguns momentos, até ela virar de lado e começar a se distanciar.


Abriu a janela com todas as forças, sentindo no rosto o vento que vinha antes da chuva e berrou o mais alto que podia:

- NORI-SAN!

E vendo que ele não o ouvira, prosseguiu:

- NORI-SAN, ESPERE! VOLTE AQUI!

E ele parou e se virou, o olhando.

- C-como tudo vai ficar, Nori-san?! Quando vamos poder nos ver de novo?! – Continuou gritando, a voz falhando enquanto enxugava as lágrimas.

E o caçador levou um dedo à boca, como se o mandasse ficar em silêncio.

- N-nori-san...

E foi embora.

Então era isso?
Era assim que terminaria?
Era isso que Minoru tentara dizer desde o começo? Que Nori era uma boa pessoa, mas nunca poderia ficar com os outros?!
Desgraçado, desgraçado, DESGRAÇADO!
Iria o matar assim que o achasse!
Matar os dois, para ser mais exato...!

Se odiou por saber que estava chorando de saudades já antes ao menos de dar tempo para sofrer e soube também o kanjou que tiraria o sono de Nori aquela noite.

Talvez assim ainda estivessem conectados...


Deitou a cabeça no travesseiro, cansado de lutar para não fazer barulho, e fechou os olhos, apático.

domingo, 18 de abril de 2010

Quarta Anotação

Nunca mais vou beber em uma reunião de família.

Nunca mais.




NUNCA MAIS.

sábado, 6 de março de 2010

Terceira Anotação

(Anotação demais e história de menos, sim, eu sei.)

Fui me matricular na tal Rural depois de andar quase três horas debaixo de um calor incômodo e sendo que ninguém sabia a localização da maldita universidade. Nesse caminho, descobri que...

... Ela ainda estava em construção?

OK... A matrícula era em outro lugar. Chegando lá, a primeira coisa que me perguntaram foi:

"Você tem quantos anos? Onze?"

Para qual eu respondi:

"Dezesseis."

Me pediram os documentos e fiquei nervoso quando falaram que estava faltando uma declaração em especial. Mandaram eu pegar ela no meu colégio e voltar no dia seguinte, e lá fui eu voltar para casa, agora mais calmo que já sabia onde era o lugar e não teria mais que sofrer por três horas.

Chegando em casa, ela estava vazia. Fui para o colégio, falei com o diretor, ele me passou a tal declaração, voltei para a casa; ainda vazia, deitei no sofá e fui dormir. Acordei quase às sete da noite, com o coração na boca e os olhos cansados, correndo para pegar minhas armas e ir caçar kanjou, quando ele surgiu do nada e me disse:

"Espere, Nori. Você soube?"

"Do quê?"

"Foi reclassificado naquela nacional. Dá uma olhada se for pegar o bonde."

"Como assim... Reclassificado?"

"Alguém não quis a vaga, você entrou. Parabéns. Já se inscreveu na outra?"

"Não, não pude. Faltou um documento."

"Bem, vá lá e volte vivo."

Saí de casa sem acreditar muito. Eu? Aceito na nacional? Na que meu professor de biologia, que me aturou dormindo o ano todo, tinha se formado? Psh. Difícil. Melhor ignorar. Ele provavelmente tinha lido algo como "Kurosawa Yuu" - 優 - em vez de "Kurosawa Nori" - 儀 - (Ele nunca teve a melhor visão do mundo) e achou que era eu. Ou então leu algum nome errado. Ou então se confundiu. Qualquer coisa. Podia até mesmo ser que a lista não era dos reaprovados e ele não tinha percebido. As possibilidades eram infinitas. Então, dei de ombros e fui fazer o que precisava.

Às quase duas da manhã, com um corte no ombro que estava me matando e mais dinheiro indo embora para gastar no alfaiate, lembrei da tal lista. Fui, só por curiosidade, vê-la, e ela ficava logo perto do bonde, já que a faculdade era logo ao norte e...

Hm...

黒澤 儀...?

Kurosawa Nori...?

É... Eu havia passado. Não consegui rir ou chorar ou pular como fiz pela primeira vez, mas voltei para casa satisfeito. Em casa, limpei o machucado e fui acordar ele, já que precisava de ajuda no que fazer. Afinal... Iria para qual das duas, se tinha como escolher? Oh, dúvida. Me joguei na cama de modo barulhento e, quando ele abriu os olhos prestes a bater e correr, apoiei a bochecha na mão e sorri (ou acho que sorri, não lembro).

"Passei, sim. E agora? Para onde vou?"

"Que horas são?"

"Importa?"

"Quero dormir."

"É amanhã que devo ir na faculdade me inscrever."

"E?"

"Preciso escolher entre uma das duas."

"Você passou na nacional. Ainda tem dúvidas? Vá dormir."

E assim, ele virou, pôs o travesseiro por cima da cabeça e começou a roncar. Hm...

Realmente... A quem queria enganar? Eu iria para a nacional.

Problema seria que só começariam as aulas no segundo semestre, então eu teria seis meses de ócio. OK. Eu posso aguentar. Ainda faltam cinco... Ainda posso aguentar. Mesmo que eu esteja com um pouco de medo de ir - Afinal, o que posso encontrar lá? Meu tempo vai ser todo tomado? Vou conseguir terminar ela, ao menos? - Quero que esses meses passem rápido...

Certo. Comecei a fazer menos sentido agora. Estou quebrado do dia de hoje e o que mais quero é dormir, mas tenho comprom- Obrigação social hoje.




Psh. Assim a felicidade acaba rápido.

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Segunda Anotação

Depois de três anos de muito esforço e drama e sofrimento, eu fiz as provas necessárias para ver se eu ia ou não para uma Universidade. As primeiras decepções não demoraram a chegar: Não passei na Estadual, não passei em uma das três Federais, depois não passei em outra Estadual...

É. Foi complicado pra mim. Quando soube que não passei na primeira Estadual, não quis me mexer. Fiquei olhando a lista, aí depois fui me sentar e fiquei lá, olhando o chão. Semimorto, na verdade. Ele me disse para levantar, porque a) Não era o fim do mundo e b) Eu ainda teria as reclassificações e c) Ainda tinha outras universidades... Aí quando eu não respondi pela enésima vez, ele se emputeceu e me deixou lá. Depois, na Federal, eu já estava estóico. Olhei a lista. Não passei. Dei de ombros e fui fazer outra coisa. Na segunda estadual, eu achei que iria me dar bem. Afinal, era algo que eu realmente gostava, não tinha como errar, não é?

Trigésimo quarto de vinte vagas.

Minha motivação caiu por terra.

Comecei a pensar no que iria fazer sem uma Universidade. Arranjar um emprego... Fazer um curso? Estudar por mais um ano? Ele me disse que, caso eu não passasse em nada, eu podia tentar no ano seguinte. Mas me seria muito ruim pensar que eu teria que gastar mais um ano quando podia ir estudar imediatamente...

Por um mês, quase, minha vida passou diante dos meus olhos. Sim, foi em slow-motion. Eu lembrava dos meus colegas de classe dizendo que eu iria passar em tudo. Que eu era inteligente. Que eu era um saco. Que eu competia demais. Que tudo era coisa séria pra mim. Que eu dormia na aula. Lembrei de quando deram as costas para mim e falaram tudo isso em péssimos termos e por isso passei o resto das aulas dormindo em um canto da sala, sem ninguém para ao menos comentar a matéria ou para copiar a resposta porque não tinha tido tempo/energias para a fazer.

Eh...

E ainda tinha ele para me dizer que queria um namorado universitário...

Aí...

Aí tentei de novo para uma Federal, esse ano. A Rural. Cujo principal campus fica no meio da serra e eu precisaria de carona ou uma bicicleta potente ou uma moto para ir, além de que poderia encontrar qualquer coisa naquela mata. Qualquer mesmo. Mas o campus do que eu queria fica só a quarenta minutos da minha casa, então... Por que não?

Esperar... Esperar...

Saiu o resultado. Fui ver a maldita lista.

Um, dois, três nomes...

O meu estava lá.

De começo, minha reação foi calma. "Passei!" Eu pensei, e sorri, e fui com esse sorriso no rosto pra casa. No caminho, encontrei alguns colegas, e eles me perguntavam e eu falava "Passei". No quinto colega de classe, eu já falava "Passei, porra". No décimo, já dava um grito e um pulo, "PASSEI! EU PASSEI NA FEDERAL, PORRA!". Quando estava chegando em casa, já estava rindo e dando pulinhos e griando todas as blasfêmeas que eu conhecia.

Quando o vi, diminuí o sorriso e fiquei tímido.

"Passei numa faculdade."

"É? Qual delas?"

"A Rural."

"Oh! Que bom! Isso é ótimo, na verdade!"

A cada frase, ele ia ficando mais contente. Pagaria bem menos se eu fosse estudar lá, então era um motivo...

Nisso, ele me abraçou e aí todo o escudo emocional quebrou. Primeiro a visão ficou embaçada, depois comecei a soluçar, então, as lágrimas, e eu fiquei chorando feito uma moleca de joelho ralado. Só parei quando notei que quanto mais eu chorava, mais ele me abraçava, e eu já estava ficando todo melado de tanta choradeira e tinha que fazer mais coisas ainda.

Saí de casa e, quando dobrei a primeira esquina, dei de cara com o outro ele. Na verdade, ele veio correndo e deu de cara no meu peito e quase caiu no chão, como sempre fazia. Ajudei-o a levantar e acho que se espantou quando viu que eu ainda estava elétrico e sorridente, gritando "ADIVINHA O QUE ACONTECEU" e coisas do tipo.

A ficha não caiu de começo. Aí levei a mão à testa e falei, "Você não queria um namorado universitário?"

Ao qual ele respondeu, "O quê? Ele passou?"

"Sim! Passei! Numa Federal!"

"Que coisa ótima! Vou ligar para ele agora!" Ele gritou, e deu meia volta.

Eu fiquei plantado lá feito um babaca até que ele deu outra meia volta e veio até mim, sorrindo feito um idiota.

"Desculpa pela piada" Ele disse, segurando a minha mão. "Então você passou mesmo..."

"Foi o que eu disse."

"Nunca te vi tão feliz."

"É. Talvez. Quer ir comer alguma coisa? Eu cozinho hoje."

Claro que minha felicidade não simplesmente caiu assustadoramente de uma hora para a outra. Eu ainda estava animado. Acho que festejei a noite toda, não lembro direito. Só lembro de ter acordado com dor de cabeça e de que, nos dias seguintes, a quantidade de kanjou aumentou muito e eu tive três vezes mais trabalho que o normal...

Oh, bem...

Importa é que consegui, não é?

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Capítulo Quatro - Parte Dois - Philia: Os dias que ainda virão

O médico olhou nos olhos do caçador, que parecia tão pasmo quanto ele.

- Nori-san! Está aí?

Mordeu o lábio, sussurrando, como o que falasse pudesse ser ouvido do lado de fora:

- Você chamou o moleque?
- N-não. – Respondeu Nori, puxando o gakuran para reabotoá-lo.
- Certeza?
- Absoluta.
- Ainda assim – Disse, levantando-se e ajeitando as roupas. – Já vai! – Gritou, virando-se para o rapaz ainda deitado na cama, e sussurrou: – O que está esperando, meu Deus? Levante-se, abotoe seu uniforme!

O garoto suspirou, torcendo a boca.

E quando o médico abriu a porta, vendo Susumu parado lá, com cara de tacho, seguindo um vagalume com os olhos, sentiu vontade de batê-la na cara dele, mas se segurou. Respirou fundo e perguntou, curto e grosso:

- O que é?
- Ah, está aí – Disse o rapaz, sorrindo e fazendo uma reverência. – Konbanwa, Himura-san. Nori-san levou meus hashi.
- Como?
- Nós almoçamos juntos – Prosseguiu ele, com a felicidade intacta. – Acho que, na pressa, ele levou meus hashi.
- Hm. – Fez Minoru, levantando uma sobrancelha. – Almoçaram juntos.
- Sim.
- Entendo. Você quer eles de volta, eh?
- Se for possível...

Parou e voltou os olhares para Nori, que saía do quarto, abotoando o último botão do seu uniforme e parecia um tanto surpreso.

- Konbanwa, Nori-san.
- Konbanwa... Susumu-kun. – Falou, levantando a sobrancelha em seguida, claramente confuso. – Houve algo?
- Sim, sim. Acho que você levou meus hashi sem querer. Na pressa, acho que você pegou eles...
- Hm. Acho que tem razão. Um momento.

Sentou-se no sofá, cruzando as pernas e pondo a bolsa em seu colo, procurando dentro dela os malditos palitinhos. Depois de alguns momentos sem sucesso na busca, levantou os olhos e disse, olhando para Susumu:
- Entre.
O garoto olhou para Minoru, que agora parecia ligeiramente mais zangado, mas foi mesmo assim, sentando-se ao lado do caçador.
- Espero que esse tempo junto dele tenha sido bom, Susumu-kun. – Disse o médico, pondo um sorriso no rosto. – Espero que Nori não tenha sido muito chato durante ele.
- Só me ameaçou jogar da janela umas quatro ou cinco vezes. Não foi muita coisa, acho. – Sorriu de volta.
- Acho que ele deve fazer isso com todo mundo naquele colégio, por isso todos têm medo dele.
- Eh? Nem tanto... Hoje de manhã fomos ambos para a sala do dire- - Começou, sentindo uma cotovelada de Nori e prosseguindo mesmo assim. - -Tor. Isso porque uns rapazes do terceiro ano vieram arranjar briga com ele. Medo? Não sei... Acho que não, Himura-san.
- Mas medo não os impediria de ficar longe – Falou ele, puxando uma cadeira e se sentando, virado para eles. – Medo é como o amor, sabe? Vem em vários sabores.
- Hm?
- Não sabia? Os gregos tinham uns quatro ou cinco amores. Eros, Agape – Disse, contando-os nos dedos. – Storge, Thelema e... Hm...
- Philia – Disse Nori, tirando tudo de dentro de sua bolsa.
- Sim, Philia. Sabe por que os kyofu são um dos piores, junto dos ai? Porque vem em vários tipos. Horror, pânico, fobia... Então. O medo de que falo pode cair na categoria do estranhamento. Nori é um corpo estranho no meio dos normais, então cria esse medo do diferente.
- Medo do diferente?
- O quê? Sim, medo do diferente. Medo de novas coisas. Neofobia.
- Isso... Existe?
- Nossa sociedade está imersa nisso.
- Hm. Acho que compreendo. Mas por que pessoas teriam medo d-
- Achei.
Voltaram-se os dois para Nori, que segurava os hashi e os entregava na mão de Susumu.
- Me perdoe por tê-los levado.
- Eh? – Fez o garoto, pondo os palitinhos no bolso da camisa. – Está... Calmo hoje, Nori-san.
- O comentário é recíproco.
- Bem, acho que vou indo, agora – Sorriu, levantando-se.
- Fique.
- Eh?
- Fique. – Repetiu Nori.
- Mas como? – Perguntou o médico, pasmo.
- Hm, não acho que... Que devo abusar assim da sua calma e boa-vontade, Nori-san.
- Tem ra-
- Fique. Não fará mal.
- Bem, se você assim quer...
- Já jantou?
- Não. Por quê?
- Vou preparar algo, então. Você gos-
- Não precisa, Nori-san! Eu como quando chegar em casa. Não se esforce.
- Susumu-kun, eu quero cozinhar para voc- Vocês hoje. Gosta de comidas ocidentais?
- Sim, mas-
- Certo. Com licença.
Entrou na cozinha e deixou Susumu sozinho com o médico, mesmo sabendo que agora sim um dos dois poderia se matar em momentos. O garoto se sentou no sofá, cruzando as pernas e tirando a lixa do bolso, olhando as unhas e notando que ainda não estavam muito boas. Suspirou e pôs-se a falar:
- Me perdoe por ter interrompido qualquer coisa que estavam fazendo.
- Oh, não foi nada – Falou Minoru, sem conseguir esconder o escárnio. – Depois podemos voltar a fazê-lo.
- Que bom.
- Mas vo-
Barulho de algo caindo no chão, e vinha de fora.
- O que...?
Nori abriu a porta da cozinha e disse, em seu monotom:
- Acabou o macarrão.
- C-como?
- Acabou o macarrão. – Repetiu.
- Tudo acaba nessa casa! – Bufou Minoru, agora claramente furioso. – Eu tenho certeza que comprei bastante para durar por um mês!
- Bem – Disse Nori, dando de ombros. – Acabou.
- Estamos sendo saqueados, mocinho.
- Quem cuida da segurança da casa é você, eu cuido da segurança das pessoas. – Falou ele, dando de ombros de novo e desviando o olhar. Antes que Minoru pudesse responder, ele prosseguiu: - Precisamos ir comprar mais. Eu vou lá.
- Nori...
- Me dê o dinheiro – Falou ele, pondo-se a desabotoar o gakuran e parando no segundo botão, vendo que não havia abotoado toda a blusa. Virou-se de lado e continuou: - Não vou demorar muito.
- Hmf. OK. Certo, Nori. Tudo bem. – Disse Minoru, tirando os ienes do bolso e os deixando em cima da mesa. – Mas volte logo, mesmo. Agora que você falou, estou começando a ficar com fome...
- Certo. Quer ir comigo, Susumu?
- Você não ous- - Sussurrou o outro, antes de ser interrompido pelo rapaz:
- Adoraria!
- Então vamos – Murmurou Nori, deixando o casaco em cima de uma cadeira, pegando o dinheiro, a mão de Susumu e o puxando para fora, tudo tão rápido que o médico foi obrigado a aceitar que ele estava sendo realmente inconveniente com aquela idéia de não falar o que havia de errado.

De começo, Susumu tentou avisar que estavam indo na direção errada – O centro não ficava ao norte – Mas o outro garoto pouco se importou. Mas quando andaram tanto que chegaram a um parque, sentiu-se no direito de perguntar o que diabos Nori pretendia fazer. Desistiu, porém, quando ele praticamente se soltou em um banco, como se fosse um boneco e tivesse acabado de desmontar.
- Eh... Nori-san? Está bem?
- Sim.
- Houve algo.
- Não me diga.
- O que?
- Só preciso que você fique comigo por uma hora e demore ao comer.
- Mas como?! Não vou ser ajudando no que seja que você esteja tramando se não me contar antes.
Nori o olhou, com a sobrancelha levantada, e esticou os braços, tomando quase todas as costas do banco com eles.
- Seu vândalo – Murmurou Susumu, balançando a cabeça. – Ao menos se comporte direito.
- Hmf.
- O que você vai fazer agora? Andar por cima de muretas? – Perguntou, lembrando-se que ele realmente quase andara por cima de um muro quando o salvara. – Esquece. Nori-san, foi você que jogou o macarrão fora, não foi?
- Talvez.
- Nori-san...
- Acho que sim.
- N-
- Não tenho certeza.
- Você quer ficar longe de Himura-san, não quer?
- Provavelmente.
- Você é meio maluco, mas tudo bem. – Disse ele, dando de ombros. – Só por causa do olho roxo?
- “Só”? – Perguntou Nori, abaixando o rosto e levantando os olhos e as sobrancelhas.
- Você me entendeu.
Depois do primeiro minuto de silêncio, Susumu decidiu sentar ao lado dele, mas o mais longe possível. Ao perceber o olhar ligeiramente confuso do outro rapaz, suspirou e disse:
- Só sento mais perto se você fechar os braços.
Este rolou os olhos e apoiou o lado do pé no joelho, tentando se fazer o mais espaçoso possível.
- Você é uma perturbação.
- Sabia que sua calma não duraria tanto, Susumu-kun.
- Eh?
- Estava bom demais para ser verdade.
- Se jogue de uma janela, Nori-san.
- Hmf.
- Feche esses braços.
- Não.
- Olhe o que irão pensar de você. Estamos sozinhos, de noite, nesse parque, e você aí, se estendendo todo.
- Problema?
- Todo.
- Conte sobre.
- Olhe bem, você me disse hoje que eu era bonito-
- Bonitinho.
- Quê?
- Eu disse “bonitinho”. Não “bonito”.
- T-tanto faz! Você me disse isso, depois tentou me beijar, e agora quer ficar com esses braços assim?! – Disse, sabendo que estava ficando vermelho. – N-nori-san, por a-acaso isso foi a... Amor a-à primeira vista?
O outro ficou alguns momentos em silêncio, olhando para cima, como se pensando. Então, foi para um pouco mais perto de Susumu e o puxou para perto, à força, já que ele estava apavorado demais para deixar ao menos o corpo mole para ser puxado. Aproximou o rosto do dele, sentindo que ele a qualquer momento iria ter um ataque, e demorou um pouco para sussurrar:
- Não.
E empurrou o moleque para longe, levantando-se do banco e pondo as mãos nos bolsos, olhando-o com a sobrancelha erguida.
- E-eu te odeio, Nori-san – Gaguejou Susumu, ajeitando-se no banco. – Não me dê... Outro susto assim, por favor.
- Hm?
- Você me assustou! Achei que estava mesmo apaixonado por mim!
- Susumu-kun é um idiota – Disse, apoiando o pé no banco.
- Por quê?
- Não há “amor à primeira vista”. Paixão e amor são diferentes. Amor se constrói com o tempo. Não há como eu te amar se eu ainda te acho um moleque inconveniente – Falou, cruzando os braços. – Já paixão? Também não. Já estou apaixonado por outr- - Começou, levando a mão à testa em seguida. – Kuso.
- Ah, está? – Riu Susumu. – O grande caçador, Nori-san, apaixonado? Por quem, mesmo?
- Cale a boca.
- Nori-san fica...
- Uma graça estressado, eu sei. Eu quis dizer que não, não estou apaixonado por você. Afinal, você é um moleque certinho demais para ao menos pensar em algo com um homem, não é?
Virou o rosto, olhando para o céu de lua cheia – Hm, mais uma semana e talvez ganharia uma folga – E, quando achou que o “Sim” de Susumu estava demorando um pouco demais, se virou, confuso.
Ele ainda estava vermelho, envergonhado, encolhido em si mesmo, com os olhos arregalados, mirando o chão.
- ... Não é? – Perguntou novamente.
- Não sei – Sussurrou Susumu, tão baixo e tão rápido que o outro quase não ouviu.
- Não sabe?
- Não sei, não sei – Prosseguiu. – Olhe, eu nunca gostei de garota alguma.
- Não significa nada.
- Mas não é esquisito? Você e Himura-san... Estão... Huh...
- Juntos?
- S-sim.
- Não.
- Não?!
- Não.
- Como assim “não”? Ele te beijou, não beijou?
- Sim.
- E como não estão juntos?
- Não estando. Por que pergunta, de qualquer maneira? – Indagou o caçador, levando os olhos a ele.
O garoto não respondeu por alguns instantes. Abriu a boca e tentou falar, mas só conseguia gaguejar e não queria se fazer de idiota na frente de Nori.
- Aproveite que estou solteiro – Disse o caçador, sorrindo um bocado e olhando novamente para o céu, suspirando ao ouvir o garoto surtar:
- Pare de achar que estou apaixonado por você! Mas que coisa, seu egocêntrico! Egoísta! Acha que é muito bonito, não é?! V-
- Você disse que sou bonitinho, também.
- Urusai yo! – Berrou Susumu, levantando-se e apontando para ele. – Cale a sua boca! Cale a boca, cale a sua maldita boca, não quero mais te ouvir falar naquilo! Eu só disse de brincadeira! Só porque você falou antes! Não pense que-
- -“eu gosto de você só porque falei coisas do tipo”. Eu sei, eu sei. – Suspirou Nori, pondo as mãos nos bolsos de novo. – Você é muito previsível, Susumu-kun.
- Eu quero te matar! Você não pode agir assim com as pessoas! – Gritou ele, gesticulando. Nori respirou fundo, virou os olhos, puxou ar para falar e logo foi interrompido pelo garoto. – Só porque se você fosse uma garota, já seria minha namorada?!
Desta vez, foi Nori quem ficou congelado lá, parado, olhando-o com as sobrancelhas ligeiramente franzidas e boca entreaberta, sem acreditar no que havia acabado de ouvir.
- S-se você fosse uma garota, já seria minha namorada – Repetiu Susumu, desta vez, mais baixo. – Realmente seria...
- Bem... – Murmurou o caçador, desviando o olhar. – Que bom... Eu acho. – Disse, coçando o rosto com um dedo.
- Você é um desgraçado e eu te odeio, Nori-san. – Bufou.
- O sentimento é recí-
Parou, olhando em volta, e Susumu notou que ele ficara alerta a algo.
- Kuso. – Sussurrou ele, correndo na direção de uma rua escura.
- N-nori-san! – Berrou o garoto, olhando-o ir. – Espere!
Decidiu ir atrás dele, de qualquer maneira.
Ele iria matar um kanjou agora? Bem no meio daquela conversa?
Mas que maldição!
Distraído em seus pensamentos, acabou dando de cara nas costas de Nori e não teve tempo de cair para trás. Por reflexo, fechou os olhos e sentiu-se ser puxado, empurrado e jogado para longe, sentindo-se cair mas não sofrer um impacto tão forte quanto de esperado. Quando os abriu, viu que o caçador o envovia com os braços e o o segurara e provavelmente havia servido de amortecedor na queda, visto que estava com o rosto contorcido em dor e tinha uma das mãos mexendo incessantemente no local da fratura.
- S-seu inútil – Sussurrou, empurrando Susumu novamente e se levantando, batendo as mãos no lado do quadril e vendo que sua kodachi e nem seu revólver estavam com ele.
- Nori-san, o que...
- Não sei – Disse, olhando o kanjou da cor do fogo que estava a alguns passos deles. – Fuja.
- Eu não-
- Fuja, maldição! – Berrou, olhando em volta e procurando por qualquer coisa que pudesse usar de arma.
- Kh!
Quando menos viu, estava novamente no chão. Desta vez, não por ter sido salvo, mas por ter salvo. Tinha salvo? Só sabia que havia dado uma ombrada fortíssima no caçador e havia recebido algum impacto no lado do corpo. Agora, estava deitado, e havia alguma coisa esquisita e vermelha escorrendo nos paralelepípedos, era-
- Droga, Susumu! Você não deveri- - Gritou, parando na metade e se virando, cerrando os dentes ao ver o kanjou parado na sua frente, fazendo algo que parecia um sorriso. – Eu mandei fugir, seu desgraçado. Corra logo enquanto pode.
- E-eu não posso... – Gaguejou o garoto, tentando se apoiar nos braços para levantar.
- Então ao menos se esconda. – Disse, olhando em volta e notando um cano solto de uma tubulação qualquer, em um ponto onde o kanjou havia provavelmente batido antes, já que estava tudo ligeiramente destruído demais.
- Mas...
- Vai me obedecer ou não, Susumu-kun? – Perguntou, olhando nos olhos da criatura e se movendo lentamente. – Saia daqui. Se esconda.
Andou um pouco mais e, quando decidiu que a distância estava boa, se jogou na direção do cano e o puxou com força, soltando-o completamente do conjunto total. Abaixou-se para não ser decapitado por um golpe da criatura, mordendo com força o pulso, muito para o horror de Susumu, e esfregou-o no ferro, manchando-o de sangue.
Quando o kanjou desceu o braço mais uma vez, jogou-se para o lado e bateu o cano nele, deixando uma marca arroxeada. Bateu com ele mais uma vez e na terceira já havia visto que fora uma péssima escolha de arma, já que o kanjou era grande demais para ser ferido do modo que desejava com apenas impacto. Chegou a conseguir desviar da mão enorme dele que iria esmagá-lo contra a parede e já olhava em volta à procura de outra coisa melhor para bater, quando ouviu uma voz gritar:
- Esse é meu!
Levou os olhos na direção do barulho e viu uma garota muito mais baixa que ele correndo ao kanjou.
- Eu disse que esse é meu! Eu vou matar ele! Deixe-o comigo, caçador!
Distraiu-se por alguns momentos e ela é que fez o favor de alertá-lo:
- Cuidado, caçador!
Correu para longe das paredes, parando no meio da rua, e encarou o kanjou de cima a baixo: Talvez tivesse uns três, três metros e meio, talvez um pouco menos, e parecia um pouquinho humano, com uma vasta cabeleira cor-de-laranja, mas seu rosto definitivamente não lembrava o de uma pessoa, com quatro olhos grandes demais, o nariz longo demais e sem boca alguma. E definitivamente estava um pouco lerdo; o que ele poderia ser?
- Hm, como se fazia, mesmo? Felicidade... Shiawase.
Desviou por pouco de um chute da criatura e quase ficou cego de tanta poeira movida por aquilo.
- Criadora, faça isto mais rápido!
- Estou indo!
Viu o kanjou sorrir e dar um peteleco no cano e o soltou antes mesmo do impacto, abestalhado e temeroso que aquilo fosse levar seus braços junto.
- Não está funcionando, criadora.
- Me dê tempo!
- Não acho que tenhamos tempo.
- Eu sei! Estava tudo bem até vocês chegarem e eu não funciono sob pressão!
- E se eu disser que tem um rapaz civil e ferido a-
Caiu para trás com o kanjou o empurrando, rolou para o lado, tentou se levantar, resolveu se deixar cair quando ele forçou sua canela com o pé de tal forma que, se não o fizesse, iria vê-la quebrada e, finalmente, franziu as sobrancelhas ao sentir o pé inteiro em cima de si. Voltou os olhos para Susumu, que conseguira se pôr de pé, sangrava pela testa e tinha a camisa rasgada e manchada e pareceu esquecer de respirar ao ver aquilo, e cerrou os dentes, sentindo a criatura pôr ainda mais força para o esmagar.
- Shiawase... Shiawase... Deuses... Shiawase... – Gaguejava a criadora, com as mãos na frente da boca.
Abriu a boca para tentar respirar quando a pressão começou a ficar insuportável e, por mais que tentasse, não conseguia mover um centímetro do kanjou.
- Eu fico feliz que esteja assim, caçador. – Disse ele.
Chegou a fechar os olhos para ao menos não ver suas vísceras saindo por todos os orifícios, mas sentiu o ar depois do grito:
- Ei, kanjou! Você era meu! Eu estava brigando com você! Deixe-o em paz! Seu problema é comigo, seu idiota!
Susumu correu e se agachou ao lado de Nori, puxando-o para perto e o abraçando instintivamente enquanto perguntava, incorrigível:
- V-você está bem? Meu Deus, o que foi aquilo? Precisamos fugir daqui. Precisamos correr, essa garota cuida dele. Você está me ouvindo, Nori-san? Está vivo, ainda? Vamos fugir daqui. Por favor. Me diz que vamos fugir.
- Você... Você pode ir – Disse ele, apoiando-se na mão para se levantar, coisa que foi quase que imediatamente reprimida pelo outro rapaz, que o abraçou com ainda mais força. – E-eu preciso ficar.
- Ficar e morrer, Nori-san?! Você nem armado está, seu maluco! Vamos embora!
Ouviu o som dos passos da criatura e levantou o olhar, perdendo a fala e a cor.
- N-nori-san...
- Eu havia mandado você fugir, Susumu-kun. – Sussurrou o outro, fechando os olhos.
Viu tudo escurecer quando o kanjou fechou a mão em punho e a jogou na direção dos dois.
- Shiawase!

























- Bom dia, Susumu-kun.

O garoto abriu os olhos de uma vez só, respirando com força, com a imagem do kanjou ainda gravada na sua mente.

- B... Bom dia, Nori-san...
- Como está?
- Não sei – Disse, olhando em volta e reconhecendo seu próprio quarto. – O que... O que houve?
- Você desmaiou.
- Eh?
- Você desmaiou de medo – Falou o caçador, cruzando as pernas e olhando a janela.
- E... Aquela garota?
- Hm?
- A criadora...
- Invocou um Shiawase, destruiu lindamente aquele kanjou, me ajudou a te trazer para a sua casa e inventou que você havia sido espancado por arruaceiros. Acho que convenceu bem seus pais.
- Ah, meus pais...! M-mas, Nori-san, eu quebrei alguma coisa? – Perguntou, passando a mão no rosto e sentindo os curativos nele.
- Não.
- Alguém me, não sei, examinou, depois disso?
- Himura-san.
- Ele me curou?
- Não muito. Não foi preciso.
- E o-
- É por isso que você não é como eu, seu covarde. – Suspirou, recostando-se ainda mais na cadeira.
- Co... Covarde?
- Sim.
- Não sou covarde. Só não sou louco como você, Nori-san, que queria lutar contra aquilo sem armas e- Ah, seu pulso! Você mordeu seu pulso ontem, Nori-san, como ele está agora?!
- Bem – Falou, virando o pulso, que estava enfaixado, para ele. – Acho que já vou agora, Susumu-kun. – Disse Nori, levantando-se e se espreguiçando.
- Mas já?!
- Sim.
- Q-que horas são?
- Devem ser uma e tantas, por aí – Bocejou, pegando sua boina em cima de uma escrivaninha, a pondo na cabeça e dando alguns passos na direção da porta.
- Você... Perdeu a aula?
Com aquilo, Nori parou onde estava e franziu as sobrancelhas.
- Nori-san... Você faltou a aula, por quê?
- Porque eu realmente não tinha condições de ir. Meus ferimentos pioraram.
- E por que está aqui, então?
- Porque fiquei preocupado.
- Preocupado?
- Sim.
- Está aqui desde quando?
- Pare de perguntar.
- Está aqui desde quando, Nori-san?!
- Criatura insistente – Disse, levantando os olhos. – Desde nove da manhã.
- O quê?!
- Desde nove da manhã. – Repetiu.
- Cinco horas esperando eu acordar?!
- Por que não?
- P-porque...
- Você me segurou quando eu precisei ontem.
- Como?
Nori balançou a cabeça, como se o outro fosse um idiota, e foi até ele.
- É um agradecimento – Disse, afastando os cabelos desarrumados da testa de Susumu. – Eu me sinto na obrigação disso.
- Mas o que eu fiz de tão espec-
Calou-se ao sentir ele beijando sua testa e ficou assim por um bom tempo.
- Agora vou-me, Susumu-kun – Disse o caçador, indo até a porta e pondo a mão na maçaneta.
- E-espere...
- Sim?
- Você... Está realmente levando isto a sério... Não está?
- Levando o quê a sério?
- Não sei... Você esteve... Se aproximando tanto de mim ultimamente.
- Idem.
- Mas você... V-você...
O caçador deu de ombros e girou a maçaneta, empurrando a porta em seguida.
- Não vá!
- Por que não? Eu tenho coisas a fazer.
- Aonde você iria?! – Perguntou, levantando-se da cama e dando alguns passos em sua direção.
- Volte. Você precisa descansar.
- Não está nada doendo, Nori-san! Aonde você iria, afinal?!
- Já pedi para parar de perguntar.
- Olhe aqui, - Disse, puxando-o pelo ombro. – Você não pode me dizer o que é ou não para eu fazer. Se eu quiser perguntar, Nori-san, eu pergunto!
- Não encoste.
- Você não gosta nem de contato físico?
- Eu odeio que me toquem sem que eu tenha permitido ou queira ser tocado. – Disse ele, levantando os olhos para o teto.
- Muito bem – Falou Susumu, sem soltar seu ombro. – Me responda onde você vai. Voltar para casa? Reencontrar com Himura-san? Seu olho roxo melhorou um pouco. Ou você vai andar? Porque eu quero andar contigo, Nori-san.
O garoto ficou em silêncio por alguns segundos, e então suspirou e olhou para a mão que ainda jazia em seu ombro, então para Susumu, para a mão e para ele novamente.
- O que houve, Nori-san? – Perguntou o rapaz, sinceramente confuso.
- Tire a mão.
- Seu fresco. – Disse, apertando-o ainda mais. – Não desvie a conversa e me responda.
- Seu quarto é legal.
- Você não sabe o quanto eu odeio quando você faz isso.
- Hm.
- Nori-san, pode ao menos me ouvir uma vez na vida?! Eu só quero saber isso, onde você vai?
Mais silêncio.
- Por favor; por que você tem esse prazer sádico em me... Fazer isso?
- Hm...
- Hm?
- O dia está nublado hoje...
Com aquilo, que havia sido dito com um pequeno sorriso, o rapaz empurrou Nori de tal maneira que este bateu as costas na parede e ficou o olhando, talvez entretido, com o mesmo sorriso de antes.
- Me responda ao menos isso!
- Por que quer tanto saber?
- Eu já disse que quero andar com você.
- E por que isso?
- Porque gosto da sua companhia! E acho que você ainda não quer voltar para a de Himura-san, não é?
- Exatamente.
- Ent-
- Pode me largar, por favor?
- Eh?
- Está me empurrando.
- Eu sei que estou, Nori-san.
- Então pare.
- Não até você me der permissão para ir contigo.
- Oh, é ousado. O que vai fazer comigo caso eu demorar? – Disse, com novamente o sorriso, puxando a mão dele para empurrar seu outro ombro.
- Você também é abusado, Nori-san. E está sorrindo. Por que está sorrindo?
- Não posso me mostrar satisfeito de vez em quando?
- Você é um idiota. Nem parece o garoto de três anos atrás.
- Hm?
- Há três anos – Disse Susumu, diminuindo a força com que o empurrava vagarosamente. – Eu achava que você era uma pessoa diferente.
- E você me observa há três anos?
- Sim.
- Maluco.
- É diferente.
- Insano.
- Eu sempre te admir-
Vendo que Nori ia o empurrar e sair da posição vulnerável, o empurrou de novo.

Há três anos o olhava...
Talvez fosse realmente doentio, afinal.
Mas não podia evitar. Quem mandava Nori puxar sua atenção desde que entrara no colégio? Ele realmente gostava de se mostrar, não gostava?
Se não gostasse, não estaria se exibindo daquele jeito sempre.
Se qualquer coisa, a culpa era dele por chamar sua atenção. Era culpa dele por tê-lo provocado por tanto tempo, não era?

- Você é mesmo doente, Susumu-kun. – Disse, pondo a mão no ombro dele também.
- Não sou.
- Ah, é.
- E pare de tentar fugir. Você mesmo se pôs nessa situação.
- E o que você vai fazer comigo, mesmo?
- Não queira descobrir.
- Não sabe.
- Exato. Não me faça querer descobrir.
- Hm. OK. Você pode ir comigo. Vou andar cinco quilômetros de uma vez só para ver você cair no meio do caminho e ficar morrendo. Agora me solte.

Ele estava o provocando...

- Hm? Me solte, Susumu-kun.

Apertou-o com ainda mais força contra a parede, a qual Nori respondeu olhando um pouco para o lado, entediado, e levantando a sobrancelha.

- Eu já respondi. Me solte.
- Está ficando desconfortável?
- Claro que não. Você só está me empurrando contra uma parede e sem me deixar ir. – Disse, o encarando por alguns segundos, e o puxou pela cintura com força, pondo o rosto perto do dele, e sussurrou: - O que você quer comigo, Susumu-kun?
- M-me solte.
- Solte você, primeiro. Ou eu vou ter que te assustar que nem te assustei ontem, no almoço? – Perguntou, em um tom de voz ligeiramente mais grosso.
- Hm – Engoliu em seco, e pretendia realmente o soltar, até porque não gostava de como ele segurava sua cintura e muito menos o que ele poderia fazer. – Que t-
Segurou o grito quando sentiu Nori uma das mãos em suas costas, as outras atrás de seus joelhos e o levantar do chão, mas não segurou – Nem quis segurar – O tapa que deu no ombro dele. Agarrou-se quase que instintivamente no pescoço do caçador e balançou as pernas, enquanto dizia, entre risadas e gaguejos:
- S-s-seu maluco, m-me ponha no chão!
- Não estou com vontade...
- V-você só pode carregar dez por ce- Meu Deus, Nori-san, você tem que me deixar no chão!
- Tente de novo. – Falou, andando com ele, mesmo que com alguma dificuldade, até a janela.
- Seu maluco! Desgraçado, insano, se alguém nos ver eu te mato e juro que te enforco com seu intestino e penduro seu cadáver num poste!
- Oh, que medo tenho de você – Disse, ameaçando o empurrar pela janela, ao qual Susumu respondeu se grudando ainda mais em seu pescoço. – Eh, Susumu-kun tem medo de altura?
- M-medo?! Eu tenho pavor de altura, eu odeio altura... – Gaguejou ele, com o coração na boca. – Me p-ponha no chão.
- Assim que eu quiser.
- Kisama...
- Largue meu pescoço.
- P-por quê?
- Está me enforcando.
- Se eu largar, v-você me deixa no chão?
- Talvez.
- Então vai morrer enforcado.
- Você sabe o quão estúpido é ficar fazendo essas brincadeiras quando se tem dois enormes curativos no rosto?
- E você, sabe, s-seu idiota?
- Quer que eu te deixe no chão, então?
- De preferência. – Disse Susumu, e percebeu o que havia feito, correndo para corrigir: - SEM me largar agora! Primeiro solte minhas pernas!
Percebeu que Nori ficara ligeiramente decepcionado e suspirou, aliviado, com aquilo. Mas ainda assim, quis gritar e o espancar quando viu que ele pretendia o deixar na cama e realmente o fez, mesmo que sem a mínima delicadeza, simplesmente o largando lá. Então, o caçador puxou uma cadeira, sentou-se nela, apoiou os pés na cama e cruzou os braços, dizendo:
- Troque logo de roupa, nós vamos andar.

Então, era isso.
Nori realmente estava o provocando. Continuava o provocando, para ser exato. Aquela admiração de três anos, então, fora completamente percebida por ele? Ele que agora o pegava nos braços, o chamava pelo nome, o convidava e o tocava e que parecia estar muito bem com isto, então ele realmente aguardava o momento?
E Minoru?
Como ficaria?
Que coisa esquisita... Se amavam, mas não estavam juntos...
Ou só Nori o amava?
E queria fugir dele?
Realmente, ele não era muito centrado.
Hm.
De qualquer jeito...

Capítulo Quatro – Philia: Os dias que ainda virão – Fim

Capítulo Quatro - Philia: Os dias que ainda virão

Capítulo Quatro - Philia: Os dias que ainda virão

Naquele Domingo que se passara, Susumu ficou sem ver o seu objeto de obsessão e aquilo o deixou ligeiramente incomodado. Saudades? Chamavam aquilo de saudades, não? E pensar que nem ao menos para ele passar perto da sua casa, ou tacar uma pedra na sua janela, já que moravam relativamente perto...
Mas não. O desgraçado provavelmente estava caçando ou se pegando com o médico ou morrendo com alguma outra coisa quebrada.

Hmf.

No dia seguinte, não se espantou muito de ver Nori com um olho roxo e um curativo na sobrancelha, ainda que mancando e andando um tanto mais lento. Foi até ele, cauteloso, temendo que ele pudesse acabar caindo ou precisando de ajuda ou algo do tipo, sendo recebido com o já normal olhar de poucos amigos do rapaz.

- Nori-san, isso foi... Ontem?

Ele balançou a cabeça afirmativamente.

- Um kanjou?

Então, negativamente.

- ... Brigou?

Confirmou, olhando para o alto, distraído.

- Com Himura-san.

Idem.

- Hm, já imaginava – Falou Susumu, torcendo a boca. – Ele não veio hoje. Por que vocês brigaram? Foi por causa da sua madrasta?
- Não é minha madrasta.
- ... Não?


...!


- Ah! – Fez o garoto, como se tivesse tido uma epifania. – Você não gosta dela porque-
- Eu mandei falar baixo. – Disse Nori, de dentes cerrados.
- ... Porque... Você... Ele...
- Um dia eu explico isso, se não tiver nojinho nem finalmente me deixar em paz – Falou, franzindo as sobrancelhas.
- M-mas-
- Está já na hora da aula, Susumu-kun.
- Ei, não mude de assun- Espere! – Gritou, ao vê-lo dar dois esforçados passos. – Você vai mesmo subir cinco andares assim?!
- Algum problema? – Perguntou ele, ainda encarando a construção do colégio.
- Eu não te entendo – Disse Susumu, indo até ele e o puxando pelo braço. – Você vem para o colégio todo ferido e acha que nada vai acontecer? Eu vou te acompanhar até lá.
- Não é uma boa idéia.
- Por que não?
- O terceiro ano não é lugar para kouhai como você.

Susumu o largou, levando a mão ao peito.

- Ouch.

E viu o Kurosawa ir até a porta do colégio e parar na frente do grupo de alunos que se preparavam para entrar. Alguns se viraram, cochicharam, comentaram e, em especial, uma meia-dúzia riu. De longe, o garoto conseguiu ouvir o nome do caçador sendo gritado e rido, e ele sendo empurrado e cutucado, e desistiu de ficar olhando e foi, por algum motivo que não conseguiu entender, à companhia dele.

Oh, claro que estavam caçoando dele. Esquisito seria se não caçoassem dele.

- E-ei – Murmurou Susumu, estendendo a mão. – Nori-san, o que-
- Ehh? “Nori-san”?
- Quem é esse moleque?
- É da 1002-A, não é?
- “Nori-san”?
- Ué, começaram a andar juntos? Conseguiu um amigo, Kurosawa? Mas que merda, hein? Justo esse...
- E já ficaram íntimos assim, Nori-san?

O garoto sentiu que havia feito algo de muito errado e confirmou quando viu Nori franzir as sobrancelhas. Aproximou-se ainda mais dele, pondo a mão em seu ombro, e disse:

- N-nori-san, essas pessoas, eles...
- Eu disse que o terceiro ano não era lugar para kouhai como você. – Suspirou o caçador, levando uma mão enfaixada ao rosto e massageando o olho machucado. – Vamos entrar.

Deu dois passos para frente e foi segurado pelo ombro por um garoto ligeiramente maior que ele.
Susumu não soube reagir quando viu Nori socar o rapaz no rosto com a mão boa. Ficou ainda mais pasmo vendo o caçador andar como se nada tivesse acontecido, enquanto o garoto no chão segurava algo que parecia um dente quebrado.

- Nori-san! – Berrou, desesperado, pondo as mãos na frente da boca.

Foi naquele momento que ele teve certeza que talvez o caçador não saísse inteiro daquele dia de colégio. Quando um puxou o Kurosawa pela gola do gakuran e ameaçou socá-lo, ele ficou estático, horrorizado com a expressão ainda calma dele. Quando o rapaz caiu, com uma joelhada entre as pernas, e Nori ficou só olhando, ele quis até rir, mas não conseguiu.
E quando outro veio se juntar à briga, não resistiu e o puxou pelo uniforme antes que ele pudesse ao menos tocar no caçador.

Não demorou muito para que um inspetor chegasse para apartar a briga.

E foi a primeira vez que Susumu foi para a sala do diretor, junto de Nori e dos outros dois rapazes.

- E então, - Disse o diretor, recostando-se na cadeira. – Que motivo idiota para briga. Vocês são uns animais. Não sabem ver um colega machucado que já acham motivo de circo? E você também, Kurosawa-san, deveria cuidar para não chamar atenção.
- Me perdoe, senhor diretor. – Murmurou ele, olhando para baixo.
- Eu quero vocês fora daqui. Vocês três. Kurosawa-san, você fica. Entendeu?

Se levantaram. Os dois garotos foram e Susumu ia junto, até ouvir o diretor falando, sério:

- Você me decepcionou, Nakahara-san.

Ai.

- Me perdoe.
- Saia daqui.

O fez e ficou esperando no corredor, recostado na parede, pensativo.

- O que esteve havendo, Kurosawa-san? Esses machucados...
- Sim.
- Deuses, você bem que poderia faltar quando chega a esse ponto.
- Eu já falto demais.
- Falta quando quebra ossos ou tem hemorragias internas. Você-
- Eu estou com uma costela quebrada.
- -Deveria estar em casa. E ainda foi brigar com outros garotos? Você é louco?

Silêncio.

- Kurosawa-san... Eu, como dono deste colégio, peço que você tome quanto tempo quiser parar se recuperar dos seus ferimentos.

Ele balançou a cabeça negativamente.

- Se eu faltar muito, repito o ano.
- Você já dorme e tem que se ausentar das aulas.
- Não é muito, mas é o bastante para eu entender a matéria. Eu estudo em casa.
- Vamos fazer o seguinte: Dada a sua condição de caçador, você passa de ano automaticamente. Apenas entre nós. Sei que você nem precisa disso, mas vai evitar reprovação por falta. Nós-
- Senhor diretor, eu quero ao menos a impressão de que eu tenho uma vida normal.


Ao ouvir os passos lentos, Susumu se virou para a porta e sorriu ao ver o rapaz sair.

- Nori-san! – Disse, com um misto de euforia e raiva. – Que bom que saiu vivo. O diretor te fez alguma coisa? Te expulsou? Te deu suspensão?
- Me disse que eu sou um péssimo aluno e que ele nunca mais quer me ver na vida. Também, me transferiu para o colégio estadual Unzentsutsuji, lá em Nagasaki.
- Naga-Nagasaki?!
- É.
- Mas como assim ele vai te mandar para Nagasaki, Nori-san?! – Disse, em tom muito mais alto que o usual. – Ele não pode fazer isso! Você vai derreter lá!
- ... Eu nasci perto de lá.
- N-nasceu?
- Sim.
- Você não é nativo de Hokkaido, então...?
- Se eu não nasci aqui, não, não sou.
- Onde foi, então? – Falou, dando alguns passos para frente, esperando que Nori viesse junto.
- Gunkajima.
- G-gunkajima?! Mas... Você... Você nasceu lá? Sério, Nori-senpai? Que incrível... – Suspirou Susumu, maravilhado. – E por que se mudou?
- Bem – Começou ele, olhando para cima. – Gunkajima é uma ilha minúscula. Nos mudamos para Hokkaido, eu e minha mãe, depois que meu pai desapareceu.
- Ei, eu lembro de Himura-san ter dito algo sobre ele ter conhecido sua mãe. Foi lá?
- Sim.
- Acho isso realmente incrível. Quero dizer, aquela ilha deve ser um lugar maravilhoso no sentido de como as pessoas vivem lá, não?
- Não.
- N-não?!
- A densidade demográfica é enorme.
- Ei, só porque há kanjou a beça lá não quer dizer que...

Calou-se.

E andaram assim até as escadarias.

- O diretor não me transferiu, Susumu-kun. Só queria ver sua reação.
- O quê?
- É.
- Mas por que isso?
- Já disse. Queria ver sua reação.

Susumu puxou o ar para falar, mas ele prosseguiu:

- Achei engraçada. – Disse, levantando as sobrancelhas.

Já o outro as franziu.

- Engraçada? – Falou Susumu, sem esperar Nori falar, já que sabia que ele iria só balançar a cabeça e continuar com aquela cara de tacho. – Você quase me mata do coração e acha engraçada? Engraçada é a sua cara, panda malfeito.

Deu as costas e foi andando, parando por um motivo qualquer, e virou o rosto, apenas para ver que ele ainda estava lá.

- Não vai subir, Nori-san?
- Você é muito bonitinho.
- O QUÊ?!
- Você é muito bonitinho. – Repetiu.
- N-n-n-nori-s-san, - Gaguejou, ao mesmo tempo horrorizado e enrusbecido, - Você... Você n-não...

Mas o que ele havia acabado de lhe dizer?!

- Acho que é comum da sua reação ser engraçada – Disse Nori, levantando as sobrancelhas novamente. – Mas não se engane, Susumu-kun. Eu ainda te odeio.

E foi subir as escadas.

Susumu foi deixado com a impressão de que havia algo de muito errado. “Eu ainda te odeio”, ele dissera? Odiar? Ele odiava, então?
Então fora capaz de pôr emoção no coração daquele desgraçado? Ou ao menos fazê-lo admitir que sentia?

Bom saber.

Talvez ele também fosse muito bonitinho, também. Aquele maldito hipócrita vândalo, sim, uma graça. Mesmo que estivesse levando Noriko a sério demais; uma graça.



Nori foi deixado com a impressão de que havia algo de muito errado, também. O que ele sentira...
Ele ficara feliz com aquilo. Confuso, surpreso, mas feliz.

Hmf.

Talvez ele estivesse levando tudo a sério demais.

Na verdade, não queria nem iria admitir que ficou a aula toda – Ou a parte da aula em que esteve acordado – Pensando na cara de idiota que Susumu ostentava no rosto naquela hora. Ele realmente acreditara naquilo, não acreditara? Acreditara com tanta vontade que talvez até ele próprio, Kurosawa Nori, estivesse começando a achar que aquilo era verdade mesmo.

Recostou a cabeça na carteira, exausto.

Aquela briga no dia anterior realmente o tirara os ânimos. E tudo por causa daquela conversa...

“Se você gostar de alguém, vou ficar com um pouco de ciúmes.”

Como ele podia dizer aquilo?

E havia sido só citar o nome daquela moça que Minoru ficara defensivo. Por que gostava de esconder aquele tipo de coisa a ele? Era só falar. Entenderia completamente. Mais ou menos. Não, não entenderia. Tudo aquilo parecia tão confuso...

Acabava lembrando daquele Mark, assim...


Fechou os olhos.


Onde estaria Susumu, agora? Dormindo na aula? No intervalo?


Só cinco minutos.

Acabou acordando só quando sentiu alguém o balançar pelo ombro, repetindo seu nome em um mantra irritante e insomníaco:

- Nori-san, Nori-san, Nori-san, Nori-san, Nori-san, Nori-san, Nori-san, acorde, Nori-san, Nori-san, Nori-

Estapeou com força a mão de quem o incomodava e virou o rosto, escondendo-o com os braços.

- Se não acordar, Nori-san, levo sua boina para casa comigo.

Abriu os olhos, ainda que ligeiramente semicerrados, e encarou o rapaz irritante de sempre.

- Por que está aqui me incomodando a essa hora?
- São 12:50. Hora do almoço. Você sempre perde o almoço assim, Nori-san?
- Sim. – Disse, e virou o rosto mais uma vez.
- Por isso está tão magro. O que você tem de tarde?
- Kendo.
- Imagino que vá faltar hoje. Você precisa de aulas disso?
- Não.
- Entendo. E amanhã?
- Natação.
- Vai faltar?
- Não.
- Tem cer-
- Pare de perguntar.
- Mas No-
- Você deveria estar almoçando lá em baixo.
- Posso almoçar aqui, se quiser.
- Não quero.
- Quer.

Nori levantou os olhos e franziu as sobracelhas, encarando-o.

- O que disse?
- Você quer que eu almoce aqui, com você – Disse, puxando uma carteira para ficar com a mesa junto da dele, frente-a-frente, e pôs o bentou em cima dela.
- Com base no que diz isso? Você está começando a me irritar.
- Nori-san fica estressado quando ferido? – Riu.
- Não perguntei isso. Perguntei com que base você diz que quero almoçar contigo. – Bufou, ajeitando-se na carteira e pegando seu almoço na mochila.
- Nori-san fica uma graça irritado.
- Eu vou te jogar por essa janela. – Falou, monotônico, com uma sobrancelha levantada, apontando para a citada. – Agora me responda.
- Você me acha muito bonitinho, lembra? Pessoas costumam gostar de ficar com quem acham bonitinhas.

O caçador não respondeu por longos momentos. Só emitiu um “Hah” e pegou os hashi, abrindo a caixinha e revelando que noventa por cento do seu pequeno almoço consistia de peixe.
- Nori-san gosta de frutos do mar?
- Sim.
- Por que?
- Só gosto.
- Meus pais sempre diziam que isso ajuda a viver mais. Não sei se devo acreditar. – Falou Susumu, pegando um sashimi do seu próprio bentou e levando-o a boca, após encará-lo. – O que você acha?
- Eu?
- Tem mais alguém aqui, seu cínico?
- Susumu-san fica uma graça irritado.
- Hahaha. Muito engraçado. É, você mesmo.
- Por mim – Disse, dando de ombros. – Não acredito. Não passarei dos vinte e três anos.
- Não diga isso, Nori-san.
- Só falo do que entendo.

Ficaram alguns minutos em silêncio, até Susumu pensar em outro assunto para puxar.

- Como é estar no terceiro ano com tal idade?
- Estúpido.
- Quê?
- É idiota.
- Por que?
- Ninguém te leva a sério.
- Mas você é bastante inteligente, até onde vi.
- E daí?
- Vai ser aceito na Universidade de Hokkaido.
- E daí?
- ... Você não tem um mínimo de respeito pelo que os outros querem? Eu quero ser aceito lá. Sei que para você deve ser fácil ser aceito para medicina, mas eu não sou um gênio.
- Gênio.
- É.
- Pfft.

Silêncio.

- Você... – Começou Nori, olhando para a janela. – Quer o quê lá?
- Estudar.
- Obrigado por me dizer o óbvio, seu idiota. Que curso?
- Não sei, seu idiota. Acho que Agricultura.
- Você não me parece alguém que gostaria de mexer com terra.
- Por que não, Nori-san?
- Você é um fresco.

O garoto levantou uma sobrancelha e pegou um sushi enrolado em algas. Sorriu e ia puxar ar para falar, mas Nori rapidamente o cortou:

- Se você citar essa alga – Disse ele, olhando para o bentou e procurando um sashimi que o agradasse. – Eu quebro todos os seus dentes.
- Nori-san tem vergonha do nome dele ser o de algas também? – Riu Susumu, sem a mínima vergonha.
- Cale a sua boca.
- Só porque todos podemos falar que comemos nori todo o dia?
- Vou realmente te jogar pela janela.
- E-
- Já fiz isso com cinco kanjou.
- N-
- Não pense que estou brincando.
- Nori-san não fica irritado quando Himura-san faz essa piada.
- Ele pode.
- Oh! Ele pode comer Nori, então?

O caçador abaixou o rosto, com os dentes ligeiramente trincados e, por mais que tentasse esconder, o outro via o quão vermelho estava. E também sabia o quão incomodado estava com aquela verdade, mesmo que tentasse disfarçar.

- Você realmente é um garoto abusado. – Murmurou. – Faz pouco mais de uma semana que nos conhecemos e já acha que tem esse nível de intimidade comigo?
- Uma semana? – Perguntou Susumu, levantando as sobrancelhas. – Creio que não. Nos conhecemos há três anos, só não conversávamos. Sempre te vi, Nori-san. Você sempre foi o nojentinho primeiro lugar de todos os testes. Sempre o nojentinho primeiro lugar dos campeonatos de kendo e acho que em alguns de shogi e go. Só uma coisa, lembro bem, você não era o primeiro.
- O quê?
- Tente se lembrar.
- Natação. – Bufou.
- Nos interclasses, quando eu competia, eu costumava ganhar de você. Você não sabe, mas era uma satisfação suprema para mim.
- Não tente contar vantagem com isso, Susumu-kun. Eu só competia para ganhar pontos.
- Você vai tentar de novo esse ano?
- Não.
- Com medo de mim, Nori-san?
- Claro.
- Nori-san e suas ironias. Acho que posso me acostumar a elas. Mas, tente! Você não está treinando já? Não está na natação, já?
- Sim.
- E por que não?
- Porque agora que sei quem aquele babaca metido e pequeno é, posso quebrar a cara dele aqui mesmo.
Susumu franziu as sobrancelhas e mordeu uma folha de alface.
- Sério – Disse Nori, levantando os olhos para ele e voltando a procurar algo que o agradasse na comida. – Você é muito baixo.
- ... Eu esperava que você fosse falar algo sério.
- Eu falei. Você é ridiculamente baixo.
- Devo ser menos de oito centímetros menor.
- E ainda tem esse rosto redondo...
- Falou o com a cara longa.
- Tudo ajuda para que você pareça mais jovem e menor do que já é.
- Idiota.
O rapaz terminou de comer seu almoço e ficou encarando o caçador, que, por mais que comesse metade do normal, demorava eras para terminar. Em vez de se concentrar em comer, ficava olhando a janela.
- O que tem de tão especial nessa vista, Nori-san?
- Estamos no quinto andar.
- E?
- É bastante alto. As coisas ficam diferentes de lá de baixo.
- Só isso?
- Sim.
- Você é uma pessoa esquisita, Nori-san.
- Eu sei.
- Não vai terminar de comer?
- Quer parar de falar, por favor?
- Certo. Não vai terminar de comer?
- Psh. Acho que não.
- Por que não?
- Muita coisa.
- Muita?
- Sim.
- Não me espanta que você seja magrelo assim.
- Talvez.
- Devia comer mais desses sushis – Sorriu, pegando um solitário do bentou de Nori.
- Deixe isso aí.
- Imagino o quão cômico deve ser Nori comendo nori.
- Minha ameaça prossegue.
- A alga é mais educada que você. – Falou, mordendo a ponta dele e sorrindo.
- Devolva.
- Mas o quê? Está sujo.
- Não me importo. Devolva.
- Nori-san é muito mal-educado, realmente...
Quase se jogou para trás ao ver o caçador se levantar subitamente e ir até ele, agachando-se na sua altura e o segurando pela gola do gakuran, passando os olhos rapidamente para ver o outro botão costurado no lugar do terceiro.
- Devolva. – Susurrou.
- Me faça.
- O que disse?
- Me faça devolver.
Foi a primeira vez que viu tamanho sorriso – E tão bestial, também – No rosto do caçador. E, segurando o sushi pelos hashi e o afastando o máximo possível - Sendo que ele se aproximava quanto mais afastava - , sentiu o rosto corar e ficou subitamente tenso.
- Vai devolver?
- N-não.
Ele pôs o rosto mais próximo ainda.
- Ainda não vai devolver?
Não respondeu.
- Vou ser obrigado a roubar seu primeiro beijo então.
- S-se fizer isso, vou ser eu que vou te jogar pela janela, Nori-san.
- Você não quer que seu primeiro beijo seja comigo, e muito menos nessa situação esdrúxula.
- N-n-não mesmo.
- Então largue esse maldito sushi.
- Nori-san, s-se entrarem nessa sala, nós...
- Quem corre o risco é você.
Vendo que ele não mais conseguia responder, se levantou, apoiando-se na mesa, e torceu a boca.
- Você é mesmo persistente, Susumu-kun...
- E-e-e-eu s-sei – Murmurou o outro, levantando os olhos para ele e os abaixando logo então.
- Tudo bem – Disse, sentando-se na carteira de novo e pondo-se a comer o resto dos sashimi. – Não faz mal.
Ficou calado, vendo Susumu ajeitar o sushi com os hashi e terminar de o comer.
- Só não reclame que isso foi um beijo indireto...
O garoto arregalou os olhos e passou as mãos nos lábios, morrendo de nojo.
- Seu desgraçado – Disse Susumu, com ódio, também. – Você me enjoa! Sabia que isso foi muito babaca da sua parte?! Fazer isso comigo... Que tipo de prazer sádico você tem nisso?!
- Se acalme, Susumu-kun.
- F-foi um beijo!
- Você ainda acredita nessas coisas de beijo indireto, Susumu-kun...? – Perguntou, levantando os olhos para ele, achando-o a coisa mais infantil do mundo.
- Por que n-não?
- Psh. Vá se acalmando. Não quero ter que jogar um kanjou e um humano pela janela.
Com aquilo, o garoto se sentou, abaixou a cabeça e tentou a esconder com os braços, como se tentasse sumir.

Ele não estava mesmo brincando quando citara que era bonitinho? Não era só uma provocação idiota?
Também, ele não tinha a mínima vergonha? Era mesmo um dissimulado... Esquisito demais. Ele e Minoru... E ele... Bem... Ele... O que seus pais iriam pensar? Mesmo que eles quisessem muito que o filhinho querido saísse de casa...
Aaaah, aquele desgraçado...
Esse desgraçado...
Ele iria pa-

- Susumu-kun, quer jogar shogi?
- ... S-sim.

Então, Nori puxou o tabuleiro da bolsa e um saco de pano com as peças.






- Você fica muito feio com esse olho roxo.
- Eu sei.
- Espero que melhore logo...
- Irá.
- Oute.
- Hm.
Nori mudou seu rei de posição, apoiando o cotovelo na mesa e o queixo na mão.
Suspirou quando o outro fez seu movimento e repetiu:
- Oute.
Moveu-o mais uma vez.
- Não tem como você vencer, Nori-san. Oute. Admita derrota.
- Não quero. – Falou, suspirando mais uma vez, olhando para o teto e jogando.
- Tsumi. Venci.
- Parabéns.
- Descobri outra coisa que sou melhor que você.
- Não tenho tempo para treinar.
- Nem com Himura-san?
- Muito menos com ele. Ele odeia.
Nori se espreguiçou e apoiou os pés na mesa.
- Não está na hora de você ir para suas atividades extra-curriculares, Susumu-kun? Já passam das duas. – Disse, olhando para o relógio pendurado na parede do outro lado da sala.
- São que horas?
- Duas e quarenta.
- Daqui a vinte minutos vamos embora, mesmo. Não adianta mais correr atrás. Bem, foi bom jogar contigo – Sorriu, levantando-se, esticando o corpo e pegando sua bolsa. – Vamos para casa?
- Não.
- Não? Vai ficar no colégio?
- Vou ir andar. – Falou Nori, guardando as peças no saco e pondo tudo dentro da mochila.
- Por quê?
- Moro com quem me deixou com o olho roxo.
- Ah. Posso ir contigo?
- Você tem certeza que não queria aquele beijo?
- A-absoluta.

O caçador foi até a porta e gesticulou com a cabeça para que o outro o seguisse. Saíram da sala, passaram pelos corredores, desceram escadas e finalmente chegaram no pátio, vazio àquela hora.
- Aonde pretende ir, Nori-san?
- Você não tem dever de casa para fazer?
- Faço mais tarde. Aonde pretende ir?
- Andar.
- Só andar?
- Sim. – Disse e parou, olhando para cima. – Conhece jeitos melhores de passar o tempo?
- Hm... Eh... Hoje é segunda-feira, não é? Você não deveria estar... Com Himura-san?
Viu o rapaz franzir as sobrancelhas e não gostou do olhar que ele tinha.
- Eu esqueci – Sussurrou, virando-se subitamente para a saída do pátio. – Me perdoe pela pressa, Susumu-kun, mas eu realmente preciso ir. Nos vemos ama-
- Você precisa mesmo?
- Sim.
- Ah, droga. – Disse, olhando para baixo. – Nos vemos amanhã, então.
- Até amanhã. – Falou Nori, prosseguindo para correr até o portão e acenando de lá.
- Não corra! – Berrou Susumu, apontando para o peito. – Você ainda não se-
Mas ele não tinha ouvido, até porque simplesmente se virou e sumiu de vista.
- -Recuperou. – Terminou o garoto, suspirando em seguida.
De trás, ao longe, uma voz gritava, epifânica:
- Finallmente te achei!
O garoto virou o rosto, esboçando um sorriso ao ver Hikaru.
- Você sumiu o almoço todo, o que houve? Foi para a sala do diretor direito?
- Não. Fiquei conversando com Nori-san.
- Nori-san?
- Sim!
- O Kurosawa?!
- Sim.
- Mas que coisa, Susumu! – Falou Hikaru, torcendo a boca. – Eu não vou mais acompanhar essa obsessão.
- Não é obsessão.
- O que você estava fazendo aqui, então?
- Me despedindo dele.
- Obsessão!
- Se você quer chamar assim, tudo bem! – Disse, pondo as mãos na cintura. – Não me importo.


Quando Nori chegou na clínica, foi direto até a sala de Minoru, encontrando-o escrevendo uma receita para um paciente. Pediu licença e perdão pelo atraso e entrou, deixando o médico com o dever de apresentá-lo para o senhor sentado à sua frente, que particularmente não se importava muito com quem era o garoto de olho roxo que havia invadido sua consulta.
Logo saiu, deixando os dois a sós na sala e um silêncio enorme também.
Demorou um pouco para Minoru, que ajeitava todos os papéis na sua mesa, perguntar, distraído:
- Por que se atrasou tanto?
- Eu esqueci que tinha horário.
- Esqueceu?
- Sim.
- Eu estou te dizendo, Nori, precisa descansar.
- Não preciso.
- Vai acabar tendo um ataque de nervos assim...
O garoto deu de ombros.
- Mas que bom que veio. Estava começando a ficar solitário aqui. Tem certeza que não quer um curativo no seu olho?
Balançou a cabeça afirmativamente.
- E sua costela, como está?
- Melhorando.
- Que bom. Veio correndo para cá? Parece tão cansado... Quer um pouco de água?
Não houve resposta.
- Vamos lá, Nori, diga algo. Não posso te deixar desidratar, tem certeza que não quer?
- Sim.
- Hm.

Houve mais silêncio, até o caçador se sentar em uma cadeira no canto da sala e perguntar:

- Que horas saímos?
- Seis e meia, como sempre.
- Vou embora às seis.
- Eh? Por que, Nori?
- Eu quero.
- Está diferente, hoje. Chegou atrasado, quer sair mais cedo... O que houve? – Perguntou, indo até ele.
- Nada.
- Houve algo, sim. No colégio.
- Fui para a sala do diretor.
- Que bom. O que ele disse?
- Que eu posso faltar quando estiver ferido.
- O que ele sempre te disse. Mas não foi isso. O que houve, Nori?
- Nada.
- Houve. Por que você não quer me contar?
- Eu acho que não... – Começou, o “... preciso contar tudo que me acontece” morrendo antes de sair. Cruzou as pernas, apoiou o rosto no punho e o cotovelo no joelho. – Não houve nada digno de citação.
- Você está ressabiado.
- Você me socou ontem, Himura-san.
- ... Sim. Eu sei. Eu acho que o que nos ocorreu nos últimos dias não foram as melhores coisas... Não quero que nosso relacionamento fique desgastado, Nori. Não queria ter brigado contigo. Foi um motivo tão idiota, não foi? Me perdoe. – Disse, sorrindo e pondo a mão na aba da boina do garoto, puxando-a para cima.
De começo, ele não gostou e tentou puxá-la para baixo de novo, deixando-o fazer o que queria após sorrir outro sorriso idiota. O médico deixou o chapéu em cima da cama e passou a mão pela testa dele, tirando de lá alguns fiapos de cabelo malcortados e ensopados de suor.
- Se quiser conversar sobre qualquer coisa, Nori... Bem, você sabe que eu prefiro resolver o que estiver pendente a deixar a mágoa crescer...
O outro continuou olhando o horizonte com cara de morto.
- Se quiser, hoje pode dormir na minha cama.
Nenhuma resposta.
- Foi aquele garoto, não foi?
O caçador franziu as sobrancelhas.
- O que ele te disse? Te incomodou mais?
Balançou a cabeça negativamente.
- Então o que ele fez?
- Conversou comigo.
- Só?
- Sim.
- E por que isso te deixou tão perturbado?
- Eu não estou perturbado.
- Está.
- Nós só conversamos.
- Bem, se você diz que sim... – Disse Minoru, dando de ombros e se afastando.
- Conversamos por duas horas seguidas e acho que foi a primeira vez que eu me senti à vontade naquele colégio fora os primeiros meses de convívio com o Katsuo. – Sussurrou o caçador, olhando para baixo.
O médico, que havia ouvido, olhou para o garoto incomodado e suspirou, voltando a se aproximar.
- Você ainda lembra dele?
- Hm?
- Katsuo.
- Sim.
- Ele está morando em Otaru agora. Não há motivos para ficar se lembrando.
- A meia hora daqui.
- Sim, a meia hora daqui, mas...
- Eu não estava pensando nele.
- Não?
- Não se faça de desentendido, Minoru. – Disse, levantando os olhos para encará-lo. – Você ouviu tudo o que eu falei.
- Sim, ouvi. E prefiro realmente não comentar o que aquele Susumu vai acabar fazendo conosco.
- Comente.
- Ele vai estragar tudo. – Suspirou, passando os dedos no cabelo do garoto.
- Mais do que está estragado?
- O que disse?
- Nada.
- “Mais do que está estragado”?
- Não. – Falou, recostando-se na cadeira.
- Não precisa esconder, Nori. Se está ruim, me diga. – Disse ele, agachando-se para ficar da altura do rapaz e o segurando pelo braço quando este ameaçou se levantar. – Fique. O que você esteve achando tão ruim?
Os pensamentos correram pela mente do caçador. Quis dizer tudo o que não gostava, mas apenas uma coisa lhe vinha à cabeça e ainda assim tinha dificuldade em escolher as palavras para não ofender o outro.
“Você esteve tão distante.”
Sim. Era assim que iria dizer.
Mas não era ele próprio o distante?
E por que estaria Minoru distante, se ele continuava ao seu lado sempre e o ajudava sempre?
Mesmo que ele estivesse distraído quanto a tudo...
E aquelas cartas, elas...
Ele estava distante, sim. Distante emocionalmente, mas distante.
Mas não era nada de mais, era? Se falasse, capaz dele se afastar ainda mais. Ele estava tentando seu máximo para consertar as coisas. Não iria estragar tudo.
Não deveria nunca ter falado que estava tudo estragado...
- Nada. Nada está ruim. Era... Paranóia minha.
- Paranóia de quê?
Odiava quando ele começava a perguntar. Quando ele começava, não iria parar até que tivesse todas as respostas em mãos.
Igualzinho a Susumu.
Ficou calado, esperando que qualquer coisa acontecesse para que Minoru esquecesse do que estava fazendo.
E passaram-se momentos assim, de silêncio e hesitação. Aquilo o deixava nervoso. Odiava ficar nervoso.
Sentiu a mão de Minoru na sua e seu coração pular do peito.
- Por favor, Nori.
Pensou em tirar a mão, se levantar e sair da clínica, mas desistiu. Não estava sendo uma pessoa muito grata fugindo assim dele. O que ele iria pensar?
Gostava dele.
Amava ele.
Com todas as falhas, ainda assim o amava.
O que estivera fazendo, afinal?
Deixou que ele aproximasse o rosto do seu e o beijasse, primeiro na bochecha e depois nos lábios.
O “eu te amo” ficou entalado na garganta.
- Eu gostaria de poder conversar contigo mais tarde, Nori... De noite? Na hora de dormir? Você precisa falar o que sente para alguém. Certo?
Ele nunca dizia “eu te amo”.
Ele nunca dissera “eu te amo”.
- C-certo.
- Me promete que vai tentar?
Por que ele não abria a boca e falava? Se ficaria com ciúmes caso arrumasse outra pessoa, o amava, não?
- Prometo.
- Que bom. – Sorriu, e o beijou mais uma vez.
E assim continuaria tudo?
Ele era realmente tão cego a ponto de não ver que o amava?
Ou justo por não o amar de volta, não dizia nada?
Mas ficavam juntos.
Ficaram.
Algumas vezes.
Quando ele estava de bom humor e queria...
Às vezes se sentia usado.
Usado? Por ele? Que o aturara de bom-grado por três anos?
Impossível.
- Agora, preciso que você ajeite essas fichas por ordem alfabética enquanto vou resolver umas coisas com o secretário. Pode fazer isso por mim?
- Sim.

Nunca três horas demoraram tanto para passar.
No fim delas, já com os dedos cheios de cortes de papel que Nori não fazia idéia de onde haviam saído, foram para o bonde e só o médico se sentou, mesmo que tivesse insistido para o rapaz fazer o mesmo. O de pé ficou observando, de canto de olho, o outro abrir um jornal qualquer e relê-lo pela enésima vez, distraído como sempre, alheio a tudo.
- Himura-san – Arriscou, em voz baixa.
Como ele não reagiu, Nori aceitou que ou não havia ouvido ou estava o ignorando. Mas não fazia mal. Chegariam em casa e tudo ficaria bem, não era?
Esperou ele abrir a porta, entrar e jogar o casaco por cima de uma cadeira, como costumava fazer. Esperou ele tomar seu café – Que provavelmente o deixaria acordado a noite toda; bom sinal não era – E tirar o colete e a gravata, deixando-os por cima do sofá.
Minoru entrou no quarto e demorou um pouco para ele o chamar. Apenas o fez enquanto Nori tirava sua bolsa e tentava ajeitá-la de modo que o tabuleiro de shogi não o cutucasse no quadril enquanto andava, fazendo o garoto quase que imediatamente soltá-la e ir ao seu encontro, ficando recostado na parede da porta.
- Sim?
- Pronto. Estamos em casa. O que quer me falar, Nori? – Disse Minoru, sentando-se na cama e se recostando na cabeceira.
- Não quero fal- Não tenho nada a falar.
- Não vamos resolver nossos problemas se não falarmos.
- Não temos problemas.
- Você disse que as coisas não estavam indo bem.
- Disse?
- Não se faça de desentendido, Nori – Suspirou ele, cruzando as pernas. – Se há algo que te incomoda, por que não falar para resolvermos isso logo?
- Porque... Quero dizer... Himura-san – Disse, com a voz firme. – Não há nada para ser resolvido. Por mim, está tudo bem.
- Se você não parar de internalizar isso, você vai acabar maluco.
- Bem, eu-
- Não venha me dizer que só porque é um caçador que precisa internalizar as coisas. Você é um ótimo caçador, Nori, mas você é meio imaturo – Falou o médico, levantando uma sobrancelha ao ver que ele fechara a cara. – No sentido que ainda não entendeu que precisa achar um equilíbrio nisso. Só internalizar vai te deixar insano. Só externalizar vai te fazer esquecer de como controlar o que sente. Entende?
Passou alguns momentos calado. Quis reclamar, quis contrariar e responder, mas suspirou e disse:
- Sim.
E percebeu que Minoru não havia gostado muito daquela resposta, mas decidiu que não podia fazer nada quanto àquilo.
- Tudo bem – Bufou o médico. – Venha aqui.
Deu alguns passos a frente e se sentou na cama.
- Você é adorável – Sorriu ele, puxando-o para perto e o abraçando. – Tenho sorte de ter você aqui perto de mim, Nori.
- Tem?
- Sim.
- Por que?
- Somos parecidos.
- Hm.
- Nunca achei que iria achar alguém assim no mundo. – Falou, o beijando nos lábios.
- Você acabou de dizer que me acha imaturo.
- Em um sentido. E você vai crescer, não se preocupe.
- Não passo dos vinte e três.
- Passa.
- Não passo, Himura-san. Não gosto de falar do que não entendo.
- Você ainda se preocupa com isso? Eu vou te proteger até onde eu puder, porque eu gosto de você.
- Gosta?
- Sim.
- De que jeito?
- Hm?
- Gosta de mim de que jeito?
- Precisa ter um jeito?
- Eu gostaria que me especificasse.
- Teria como eu definir o que sinto por você? – Sorriu ele, o beijando mais uma vez e roçando os lábios contra seu pescoço.
O garoto não respondeu. Apenas tentou sair da posição vulnerável empurrando-o no peito para se distanciar, sem sucesso.
- Pode ficar comigo hoje, Nori? – Prosseguiu o médico, e passou a língua pela concha da orelha do rapaz e pelo lóbulo, puxando-o ainda mais contra seu corpo, não se importando muito quando ele só suspirou algumas vezes e fez mais força para se afastar. – Você quer, não quer?
Se queria?
Se queria?

Não tinha certeza.
Parte dele adoraria ficar até tarde da noite com ele, apenas para acordar nu e no frio e ter que correr para tomar banho e ir para o colégio.
Já a outra parte ainda estava incomodada. Havia algo de errado e não sabia exatamente um jeito de revelar ou consertar aquilo. Se falasse, ele iria ficar tão zangado...
- Devo tomar seu silêncio como um “sim”?
Desistira de tentar fugir.
- Você é tão bonitinho...
Outro beijo. E outro, um pouco mais demorado. No terceiro, sentiu a língua dele na sua e apertou seu pulso enquanto ele acariciava sua nuca.

Não poderia estar fazendo aquilo.

Não deveria...

Fechou os olhos quando Minoru o derrubou na cama e beijou seu olho roxo de leve, metendo as mãos no gakuran e o desabotoando completamente, descendo a trilha de beijos. Quando ele estava perto de tocar o local da costela quebrada com os lábios – E falando coisas que não mais faziam sentido para o rapaz, que mantia o olhar no teto e sentia o corpo querer se contrair e mal ouvia os próprios suspiros – Houve o som que Minoru aprendeu, naquele dia, a odiar.

- Nori-san!