segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Capítulo Três - Parte Dois - Confiança; deixar-se levar

- Você estava mesmo desligado, eh?

- Sim, estava. Pensando na vida.

- Na vida?
- Sim, Himura-san.
- É? Quem costuma pensar na vida é o Nori.
- Bem, ele tem muito o que pensar...
- Verdade. E aí, já decidiu sobre quando vai parar de nos perseguir?
- E-ei!
- Estou brincando, pirralho. Brincando. Aqui, é para pegar o bonde, não saia andando assim direto, volte aqui. A viagem será longa.
- Longa?
- Mais ou menos quarenta minutos.

Então, entrou Nori, depois Minoru e, finalmente, Susumu. Sentaram-se os três no fundo do carro e não demorou muito para o Kurosawa cruzar os braços, abaixar a cabeça e cair no sono.
Ficou o outro rapaz o olhando com infinita pena, enquanto o médico olhava a paisagem e segurava o maldito bolo nas mãos.
- Eh, Himura-san?
- Sim?
- Ele vai ficar dormindo aí?
- Por que não?
- Não acha incômodo?
- Vou o acordar para, quando chegarmos na residência dos Akiyama, ele se deitar num sofá e dormir mais?
- Não era bem o que eu... Mas... E se... E se algo acontecer? – Perguntou o garoto, cruzando as pernas.
- Algo em que sentido?
- Um kanjou.
- Se acontecer, ele vai acordar.
- Tem certeza?
- Não.


E a viagem correu bem por uns bons minutos. Susumu chegou até a pensar que nada de esquisito ocorreria naquele dia – Afinal, já era quase dez, onze da manhã e não havia visto sangue em lugar algum. Não importava se Nori estava se mexendo tanto que parecia capaz de acordar gritando. Nada iria estragar seu dia.

Então, ele abriu os olhos e ficou encarando a tudo com até espanto antes de se levantar e ir andar pelo carro, com as mãos nas costas.

- Achou algo? – Perguntou Susumu, apoiando os cotovelos nos joelhos.
- Foi só um pesadelo, imagino – Disse o médico, cruzando as pernas.
- Ele...
- Não todas as vezes.
- Você quer dizer que ele não fica assim todas as vezes quando tem pesadelos?
- Sim.
- ... Não é incômodo?
- É, mas fazer o que? De qualquer jeito, fique frio. Não demora muito se não pararmos pra pensar. Só olhe a paisagem e deixe ele.

O fez, mesmo que sem conseguir parar de voltar sempre os olhos para certificar que ele ainda estava de pé e vivo.

E assim foi por quase uma hora. Quando finalmente saltaram, ele parecia o único exausto da viagem, mas também o único aliviado de ainda nada de esquisito ter acontecido. Na verdade, era o que mais estava pensando – Na possibilidade do dia ser normal. Conhecia os dois fazia muito pouco tempo, mas já queria que ficassem bem – Ou que sua pele ficasse bem? Na verdade, tanto fazia, não fazia? Em alguns encontros com kanjou, o único ferido fora Nori, mesmo quando Susumu estava logo na frente da criatura. Não haveria de ser diferente assim, haveria?
Virou-se e acompanhou os dois, que andavam até um portão bastante decoado, e se espantou com a extensão da resisdência dos Akiyama. Ora, dizendo “residência”, Susumu imaginava uma casa ou duas, ou um pequeno conjunto de casas, no máximo quatro ou cinco, ou uma parte da rua que magicamente fora comprada pela mesma família. Não imaginava uma coisa semelhante a uma mansão – Não, não era semelhante a uma. Era uma. – Ocupando metade de uma rua e com tantas, mas tantas árvores, e aparentemente tanta gente que o rapaz se perguntou como seria possível viver lá por uma semana sem se perder.
Quase se deixou se perder, na verdade, quando não notou, de começo, os dois indo na frente. Os alcançou rapidamente, correndo, e não gostou muito do olhar que Nori lhe lançou.
Mas tanto fazia, não? Desde que ficasse protegido...

Afinal, estava no antro dos caçadores...

E Minoru estava indo na frente e falando com uma moça qualquer, provavelmente uma porteira ou empregada, e provavelmente pedindo permissão para entrar...

- Nakahara-san – Murmurou Nori, pondo as mãos nos bolsos.
- Eh? S-sim?

Foi até ele ao vê-lo fazer um gesto com a cabeça para que se aproximasse e esperou, ao seu lado, o médico os chamar.

- Aqui é meio grande – Disse Minoru, olhando em volta. – Mas você logo se acostuma. Fique com o Nori e tente não se perder dele. Quando vierem falar contigo, o faça normalmente e não responda perguntas pessoais. Deixe que eu e ele fazemos isso. E, Susumu, você vai ver coisas muito esquisitas aqui, então por favor tente segurar sua carinha ridicula de nojo.
- Que tipo de coisas estranhas?
- Muita gente. Muita gente ferida. Muita gente doente, também. Aqui serve como um grande hospital para os caçadores Akiyama. Quem aqui não é ou foi caçador, é pacificador. Alguns poucos são criadores. O resto são idiotas alheios a tudo.
- Pacificador? Criador?
- Oh, acho que esqueci de te explicar – Murmurou ele, pondo a mão no queixo. – Nori, o faça, sim?
- Mas eu nã-
- Vamos lá, você está tão falante hoje, vamos manter esse nível! – Sorriu Minoru.

O outro rapaz franziu as sobrancelhas, levou os olhos a Susumu, escolheu as palavras e disse, do modo mais lacônico e resumido possível:

- Pacificadores impedem que kanjou se formem. Criadores os criam.


Aquilo deixou o outro rapaz mais confuso que antes.

- E... Como pacificadores fazem isso? E criadores não seriam ruins para os Akiyama?

Nori olhou para o médico.

- Sua vez. – Disse.
- Eh... Pacificadores são pessoas que não trabalham diretamente com os kanjou e sim com as pessoas. Evitando o problema, evitam emoções em excesso. Por exemplo, um-
- Psicólogo. – Interrompeu Nori.
- ... É um pacificador. Um-
- Psiquiatra.
- -É um pacificador. Um-
- Médico.
- -T-também é um. E na verdade, mocinho, muitas vezes um amigo pode servir de pacificador – Falou, olhando para Susumu e para Nori inúmeras vezes, até o último franzir as sobrancelhas pela enésima vez.
- Eu nunca tive excessos. – Murmurou o caçador, olhando feio para o outro. – Se, um dia, eu estiver prestes a ter um, procuro ajuda médica, não, hm, gente qualquer que não entende da situação.
- Me desculpe por ser um qualquer e não entender da situação – Disse Susumu, fingindo uma cara feia.
- Cale a boca e vá pensar sobre mim.

Aquilo realmente o calou, fazendo-o apenas criar uma expressão assustada e abestalhada.

Minoru soltou algumas risadas idiotas e prosseguiu, andando, confiante:

- Um criador é útil quando ele consegue controlar bem o que sente e usa isso pra criar kanjou e usá-los contra os outros kanjou. Me entende?
- E-ele acabou de me dizer para – Gaguejou Susumu, apontando meio que debilmente para o outro, que rolou os olhos e deu alguns passos para a frente.
- Me entende?
- Mas e-ele-
- Moleque – Murmurou Minoru, levantando uma sobrancelha. – Se você veio conosco só por causa dele, me diga que imediatamente te ponho no bonde de volta.
- Não é isso! – Disse, passando as mãos nos cabelos. – Não é nada disso! Eu mal o conheço! É só que, que, bem, que ele... Ele... Ele falou aquilo de brincadeira, não falou? Só quero saber isso. Falou, não falou? Então perfeito! Não há mais o que discutir! E sim, eu entendi, criadores criam kanjou e pacificadores impedem que kanjou surjam, podemos ir?

Então, sem esperar uma resposta, apertou a barra da camisa, abaixou a cabeça e, com uma expressão perturbada, pôs-se a andar. Mal viu que Nori e Minoru trocaram alguns olhares que falavam mais que os monólogos de seu professor de Filosofia e definitivamente diziam bem mais que eles; tanta coisa que, mesmo se olhasse, não teria conseguido identificar o que queriam passar.
Não custou muito para o sol parar de bater nos olhos do garoto cabisbaixo. Parou na porta e deixou Minoru e Nori entrarem, não percebendo exatamente que o último havia parado, dado meia volta e ido até ele, parando na sua frente e o olhando de cima.
- Vamos. – Disse ele, olhando para o lado.
- Olhe, Kurosawa-senpai, eu estava pensando bem e-
- Vamos.
- -Eu acho melhor eu ficar por aqui, porque-
- Vou pedir mais uma vez. Vamos.
- NÃO, Kurosawa-senpai!
- Sabe que não me incomodo de você me chamar pelo nome.

Aquilo desnorteou um pouco o rapaz, que balançou a cabeça e prosseguiu:

- Eu prefiro ficar aqui, Kuro-
- Nori.
- -sawa-
- Nori.
- ... Nori-senpai.
- Obrigado. Vamos?

Com aquilo, pegou-o pela mão e tentou dar alguns passos, mas mais que rapidamente o outro retesou-a, olhando-o, abismado.
Ficaram alguns momentos calados, até que Nori deu de ombros e foi.


O que havia... Acontecido?

A mão dele era tão gelada...


- Nakahara-kun! Vai ser a última vez que vou te chamar!


Tão, mas tão gelada...


- Estou indo!


Mal o conheço, mal o conheço, mal o conheço, ele não é Noriko e sim Nori, mal o conheço, ele me odeia e eu também o odeio, quero que ele morra e vice-versa, quero ver ele ensanguentado e – Não, não quero, isso me faria querer ir ajudá-lo e...

- Está pensando sobre mim de novo, Nakahara-kun? – Perguntou o outro, entre risos.

Não pensar nele, não pensar nele, não sorrir com ele sorrindo, manter-se sério e-

- Sim!

Ele abaixou a cabeça e sorriu um pouco como costumava fazer quando estava envergonhado, soltando um “heh”, como se não conseguisse acreditar.
- Vamos logo. Não nos esperarão para sempre.

... Então, era aquilo? Estava convencido?

Simplesmente com um sorriso e um pedido simples?

Não podia ser. Não mesmo.

Ao entrarem na enorme casa, Susumu se viu entre dezenas de pessoas que não pareciam exatamente amigáveis. Todas andavam concentradas em seus afazeres, cabisbaixas, focalizadas, sérias. Todos os caçadores eram assim, então? Ou envolvidos naquilo. Não deixou de as olhar, abismado, mesmo depois de Nori ter o puxado pelo braço até um quarto em particular.
Pararam os três na frente deste, Minoru batendo o pé no chão, ansioso para que abrissem logo as portas. Assim que o fizeram, entraram o médico e o caçador, e o estudante ficou para trás.

Aquela era Yuzuki?
De rosto ferido e cheia de curativos nele, mas ainda com aquele rosto solene de sempre?
Com um esparadrapo e gaze acima do lábio e sangue manchando tudo...

Deu um passo para trás, assustado, e a moça virou o rosto para vê-lo melhor.

- Bom-dia, Yuzuki-kun – Disse Minoru, sorrindo. – Nós viemos apenas agradecer por ontem.
- Não se incomodem – Disse ela, voltando a olhar o nada.
- Trouxemos bolo.
- Muito obrigada. Podem deixar ele aí.
- Não vai-
- Eu mal posso falar, Minoru-san. Me perdoe, mas não poderei comê-lo agora.
- Me desculpe.
- Eu é que peço.
- Então acho que vamos agora, Yuzuki-kun. Mil perdões pelo que lhe aconteceu ontem e desejamos melhoras.
- Pode chamar Nori-kun, por favor?

O rapaz, ao ouvir seu nome, levantou as sobrancelhas e foi até a moça de kimono sentada no chão.

- Sim?
- O que houve com você?
- Hm?
- Está fraco. Amolecido.
- Sim. É a escola.
- Último ano?
- Sim.
- Deseja alguém para te substituir?
- Não.
- Certo. Boa sorte, Nori-kun.
- Nos vemos mais tarde. Desejo melhoras.

Saiu e olhou para Susumu, que jazia confuso, e deu de ombros, como se já estivesse acostumado àquilo e que fosse a coisa mais normal do mundo.
- Vamos voltar para casa – Disse Minoru, coçando os cabelos. – Preciso fazer uma coisa lá. Está convidado a ir lá também, Susumu-kun, acho que Nori pode fazer outro bolo para-
- Não, não posso.
- -Nós. Nos perdoe caso a ida à residência dos Akiyama não tenha sido o que você esperava.
- Não, tudo bem. Eu entendo.
- Não entende.
- Hm, talvez não.

Na volta, o bonde atrasou quase duas horas. O motivo, disseram, fora que o motorista de um deles havia tido um ataque de pânico no pior momento e perdera o controle da máquina, que tivera que ser removida da linha, com alguns feridos.
Susumu notou que Nori e Minoru se entreolharam por alguns segundos, mas nada disse. Isto é, até o médico, sentado no fundo do carro, comentar:
- Falaram que ele tinha visto um oni.
Nenhum dos dois respondeu.

Ao chegar em casa, Minoru foi o primeiro a tirar o casaco e o jogar em cima de uma cadeira. Pegou papel, tinteiro e caneta, sentou-se à mesa e começou a batucar com os dedos na madeira, pensando no que escrever.
- É uma carta? – Perguntou Susumu, olhando tanto para ele quanto para Nori deixando a boina em cima da mesma mesa.
- Sim.
- Para quem, se me permite?
- Uma... Amiga.
Notou que o outro rapaz havia parado tudo que estava fazendo.
- Amiga? – Perguntou ele, primeiro.
- Sim, Nori. Reika-san.
- Ah, sim. Reika-san. Ela te mandou uma carta e eu não soube?
- Não lembrei de avisar, além de que eu não preciso te mostrar nada que eu recebo.
- Ah, sim. Você gosta mesmo dela, não gosta?
- Muito. É uma grande amiga – Disse Minoru, levantando a sobrancelha.
- Nunca a viu na sua frente. Só se comunicam por cartas...
- Sentimentos não têm limitações e você deveria saber muito bem disto. – Respondeu, soando um tanto grosso aos ouvidos de Susumu.
E Nori franzia as sobrancelhas e recuava como se tivesse tomado um soco.
- Eu não entendo. – Arriscou novamente o caçador.
- Qual parte?
- A parte que...
Passou alguns momentos calado, olhando para baixo, com a boca retorcida, e balançou a cabeça.
- Nada. – Disse. – Me perdoe, Himura-san. Vou lá fazer o bolo. Com licença.



- Psh.


Esquisito.


- Essa sua amiga, Himura-san... Onde você a conheceu?
- Ah, foi por sugestão de um amigo meu – Disse ele, escrevendo a carta. – Ele me passou o endereço dela porque ela trabalha com ervas medicinais e começamos a trocar mensagens.
- Isso há quanto tempo?
- Cinco meses, mais ou menos. Ela é uma grande pessoa.
- Hm, será que será sua esposa algum dia? – Riu, pondo a mão na frente da boca.
- Eu assim espero!


- Psh.





- Você cozinha muito bem, Kuro-
- Nori.
- -sa-
- Nori.
- Nori-senpai!
Disse aquilo de boca cheia, pois estava tentando pôr um pedaço enorme de bolo de chocolate nela.
- Aprendeu como?
- Com o tempo.
- Hm, Himura-san comentou.
- Claro que sim.
- Hm?
- Ele se orgulha disso.
- De ter um cozinheiro particular?
- De ter alguém que esteja lá sempre para cozinhar para ele.
- Onde ele foi, falando nisso?
- Entregar aquela maldita carta...
- “Maldita”?
- Psh.
- Bem, eu soube de filhos de pais viúvos ou separados que resistiam à chegada de uma madrasta ou padrasto.
- O quê?
- A tal Reiko! – Disse Susumu, fazendo círculos no ar com o garfo.
- Reika.
- Reika. Himura-san comentou que ela...
- Psh.
- Você realmente gosta desses “psh”s.
- Só os faço quando estou incomodado.
- Sério?
- Psh.
- Comigo?
- Não. Com ele. Você vai entender algum dia, Susumu-kun – Disse, levantando-se e se afastando da mesa, indo até seu quarto e gritando de lá: – Eu preciso ir caçar, agora.
- Já?! São quase onze da manhã, só! – Falou o rapaz, levantando-se também.
- Eu nunca disse que teria descanso.
- Mas, Nori-senpai, e-e-e a casa?!
- Você vem comigo. - Disse Nori, abotoando o gakuran, já com o revólver no peito e a kodachi na bainha da cintura.
- MAS-
- Vamos logo. Temos pouco tempo.


Saíram com tamanha pressa e Nori correu tão rápido pela rua que Susumu acreditou que iria perdê-lo de vista em pouco tempo, assim. Ao chegarem na praça principal, um pouco ofegantes – Ou ao menos o rapaz, o caçador continuava intocado – Deram de cara com uma cena peculiar:

Primeiro, o kanjou branco correndo com suas longas pernas e pulando carros e o bonde, no meio das pessoas.

Depois, quando Nori estava correndo já no meio da praça, entre os trilhos e os carros, quase alcançando o kanjou, um dos veículos – Que iria bater no bicho se este continuasse correndo na sua direção – Desviou da rota bruscamente e foi para a direita.


O garoto teve tempo de gritar um palavrão e tentar se jogar para trás ou para o lado, para fugir e voltar a correr atrás da criatura. Em vez disso, sentiu o automóvel bater com força em seu corpo e o impulsionar para trás, fazendo-o cair a uns bons metros do local do impacto, ralando o rosto no processo.

E Susumu só conseguiu gritar – Inclusive no lugar dele – Aterrorizado. Em um momento, ele estava correndo; no outro, estava atropelado?! Sangrando, no chão, caído, talvez desacordado, talvez morto?
Assustou-se ainda mais quando Nori tentou se apoiar nos braços para se levantar, encontrando-se fraco demais para isto e tombando no chão, sussurrando mais palavrões, vendo o kanjou sumir de sua vista. Ele não deveria estar se esforçando assim. Não deveria, não deveria; vai que estivesse com alguma costela ou vértebra quebrada; por que diabos ele tinha que se arriscar tanto?!
Em meio às pessoas curiosas e preocupadas que se encontravam estava o próprio motorista do carro, que repetia, aterrorizado:

- Um oni! Foi um oni! Um oni surgiu para mim!


O rapaz sabia do que ele estava falando, mas preferiu se preocupar com o caçador primeiro. Abriu caminho por entre a multidão – Como no dia seguinte ao seu próprio ataque – E, em vez de encontrar apenas sangue seco no chão, o achou lá, parado, provavelmente sentindo algo dolorido ou quebrado ou, quem sabe, uma ponta quebrada de uma costela roçando seu pulmão ou coração?


- Ei. Nori-san. Ei, Nori-san, está bem? Está me ouvindo? Sou eu. Susumu. Já chamaram uma ambulância para te levar, certo? Não se preocupe com nada. Vai tudo dar certo.

Com enorme esforço, o caçador respondeu, entre os dentes trincados:

- E-eu sei q-que vai. Sempre dá. O-onde está... Himura-san?
- No mesmo lugar de antes. No correio.
- Kisama.
- Onde dói?
- Tudo d-dói. Não é... – Parou, respirando fundo e olhando em volta, imóvel. – Uma dor desconhecida. M-muito pelo contrário. Fui atropelado umas... Duas, três vezes, já. Tudo caçando. T-tudo caçando. Nunca morri. Acho. Ah, acho que bati a cabeça, ela dói tanto – Murmurou, fechando os olhos e esboçando um sorriso ao sentir a mão de Susumu, ou era a de Minoru?, segurando sua cabeça. – Aquele oni... S-se ele voltar hoje, eu... Vou precisar falar com...


Susumu sentiu o coração saltar ao vê-lo fechando os olhos. Tentou o sacodir algumas vezes – Sendo impedido pelas pessoas em volta – E gritou seu nome algumas vezes, sem sucesso.

Então aquele maldito iria decidir morrer lá, hm?


Ah, não. Não iria deixar mesmo.
















- Boa tarde, Nori-senpai.

O caçador abriu os olhos lentamente, demorando a se acostumar à luz do cômodo, mas sem ainda ver algo de verdade. Só formas.

- Você dormiu bastante. Está descansado, Nori-senpa-
- N-nori!
- ... Está descansado, Nori-san?

Balançou a cabeça afirmativamente, olhando em volta. Susumu sentado em uma cadeira, sala vazia, os dois sozinhos, Minoru com uma xícara de-

Minoru?!

Olhou de volta, vendo que não havia ninguém lá.



Uma alucinação?


- Como está se sentindo agora?


Não podia ser uma alucinação.

Por que ele não está aqui? Ele sempre vinha-


- Nori-san?


Ele sempre vinha para me-


- ... Kurosawa-senpai?


E se ele não está mais...-


- Eu acho que já pedi para você ao menos dar uma dica que está me ouvindo e não só ficar olhando o nada com cara de tacho, Nori-san. – Disse Susumu, olhando as unhas e pensando que talvez estivesse na hora de cortá-las. – Você está bem, não está? Quero dizer... Você quebrou uma costela.


Ao menos a dor ao respirar não era sinal de que iria chorar.


- Quebrou uma costela e ficou lá desmaiado por um tempo. Te levaram pra cá e fizeram o possível. Não puderam te abrir e botar tudo no lugar, claro, precisaria de permissão de Himura-san. Disseram que seu caso não é tão ruim – Prosseguiu, tirando uma lixa do bolso e passando-a nas unhas. – Que é só você descansar e ficar parado por um tempo. Huh, quero dizer, alguns meses. E agora, Kuros... Nori-san? – Perguntou, olhando-o nos olhos.


E agora?

E agora?


- Onde está o meu revólver?
- O quê?!
- Acho que vou precisar dele. Onde está?
- O que você pensa que vai fazer, Nori-san?!
- Me preparar para caso algo aconteça.
- Para o que, por exemplo?

Não respondeu e Susumu entendeu perfeitamente os motivos.

- E agora, Nori-san? – Perguntou ele, de novo.

Minoru, ele...


- O que há para ser feito?
- Não sei, o que você faz quando vem pro hospital?

Novamente, o silêncio.

- Não quer dizer?

Mais silêncio.

- Vamos lá, Nori-san. Me diga algo.

Franziu as sobrancelhas. Se não fosse pela voz, teria até confundido; porque o vocabulário e o tom foram os mesmos...

- Eu acho que estou como... Huh... Na posição de te defender, agora... Eu vim como acompanhante, então preciso saber o que você pretende fazer...

Foi respirar fundo, mas sentiu uma pontada no peito e parou, de dentes trincados e expressão de dor no rosto. Não costumava doer. Não mesmo, até porque ele o tratava tão rápido que nem tava tempo de doer...

E Susumu percebera que estava faltando algo. Com toda a certeza.

- Está... Doendo muito?

Nori não estava para papo naquele dia.

Claro, de costela quebrada e sem o médico por perto...

- Sim. – Sussurrou o caçador, virando o rosto.

Ia puxar ar para dizer algo minimamente reconfortante, mas ele prosseguiu:

- Dói muito. Insanamente muito.
- Então chore, se dói.
- Doerá mais.
- Doerá mais?
- Hmhm.
- Ou está dizendo isso porque tem medo de chorar e ter uma overdose?
- Psh.
- É ele, não é? Você está triste.
- Jura?
- Hah, Nori. Não precisa ficar irônico e na defensiva. Não precisa ser gênio ou caçador pra ver que você está triste. Muito triste.
- Sim, estou morrendo de tristeza que ele provavelmente ainda está na fila para comprar um selo e não sentiu que eu fui atropelado e preciso de ajuda como sempre sentiu até então. E daí?
- “E daí”?
- Hm.
- E daí que... Nada. Nada mesmo. Se-ra-bi.
- Sim. Se-ra-bi.



Silêncio.


Susumu ficou estático, olhando os olhos do caçador, que focalizavam o nada. Notou que o direito estava se enchendo de água e – Ele ia chorar? Ele ia chorar?! – Ficou o encarando como se aquele momento fosse muito raro e especial. Porém, ele levantou os olhos e enxugou a lágrima assim que ouviu a porta se abrir e bater e uma pessoa entrar, ofegante.

- E-eu vim assim que pude, Nori! – Berrou o médico, apoiando as mãos nos joelhos e respirando com força. – O-o que houve, meu Deus?!
- Que bom que finalmente chegou, Himura-san! – Disse Susumu, levantando-se da cadeira. – Por que demorou tanto?!
- Eu tentei vir, mas... Mas... As notícias não correram rápido o bastante – Disse ele, apoiando-se na parede. – Mas... Quando eu soube que... Você tinha sido atropelado, Nori...
- Você não veio – Murmurou o caçador.
- O quê?
- Você não veio. – Repetiu ele, no mesmo tom.
- Como pode dizer isso?
- Você não veio, Himura-san – Persistiu. – Susumu-kun disse que eu estou há algumas horas aqui. Imagino que você não esteja mais com a carta que disse que iria entregar, também.



Respirou fundo, mordendo o lábio inferior em seguida, para conter o grito de dor.


- Mas tudo bem – Prosseguiu. – São suas coisas. É a sua vida.
- Não, Nori. Me perdoe. P-por favor. Só hoje.
- Não há nada para ser perdoado.
- Há.
- Não há. Acredite em mim. Você não fez nada de errado.
- Pare com isso, Nori...
- Eu só preciso que você me cure aqui. Só isso.

O médico olhou para baixo e suspirou. Foi até o caçador, puxou uma cadeira, sentou ao lado da cama e apoiou os cotovelos nela.

- Onde está quebrado?

Nori apontou para a costela que se mexia independentemente de sua respiração e olhou para Susumu, de sobrancelhas franzidas. O rapaz o encarou de volta, confuso, e passou os olhares para Minoru, que torcia a boca em desgosto.

- Mas que coisa – Disse ele, levando a mão à boca. – Acho que consigo dar um jeito nisso. Eh, moleque – Falou, olhando o garoto, que ainda estava com a lixa nas mãos, apesar de prestes a deixá-la cair. – Olhe isso. Um pacificador-médico experiente consegue fazer muito melhor, mas vamos lá.

Tocou, com um dedo de cada vez, mas incrivelmente rápido, alguns pontos da área da fratura. Então, o médico pressionou a palma da mão contra o local, e Nori fez uma ligeira expressão de dor.

- Pronto – Disse, batendo as palmas das mãos uma na outra. – Agora é contigo, Nori. Acho que em dois ou três dias você estará bom de novo.
- ... Dois ou três dias? – Perguntou Susumu, pasmo.
- Sim.
- D-dois ou três dias?!
- ... Qual o problema, moleque?
- Mas como assim dois ou três dias?! Caiu de um mês para alguns dias?!
- É meu papel como pacificador-médico acelerar a cura, Susumu-kun – Sorriu Minoru, pondo a mão no peito. – E olha que Nori ainda tem uma taxa de recuperação baixa. Alguns ficam bons em horas.
- I-incrível.
- Eu sei.

Ficaram, pela enésima vez, calados.

Susumu olhou para a porta, pensativo.

Minoru aproximou o rosto do do caçador.

Nori franziu as sobrancelhas e pensou em empurrá-lo.

E, novamente Susumu, que fingiu não ter visto o primeiro beijo, mas se virou para eles no segundo e tentou disfarçar a satisfação ao ouvir Nori dizer, mesmo que em tom baixo:

- Pare. Por favor.
- Mas você não-
- Não.
- Nori, eu-
- Você não precisa tentar pedir perdão por algo normal que você fez, Himura-san. Eu odeio que me forcem desculpas por algo que não precisa disso.

Ele podia suprimir e esconder, mas havia vezes que ficava óbvio demais.

Horas depois, enquanto Susumu digeria o que havia visto e ouvido, na porta do hospital – Ah, aquilo parecia tão nojento, tão errado, mas... Se Noriko não existia, por que não- - O caçador surgiu ao seu lado, de mãos atrás do tronco, e disse, calmo como se nada nunca tivesse acontecido:

- Me perdoe pelo incômodo hoje.
- Não foi nada.
- Vou te acompanhar até em casa e explicar a situação aos seus pais, certo?
- E... E Himura-san?
- Está ajeitando a conta.
- M-mas Nori-san, e o que ele fez contigo?
- Hm?
- O beijo. Ele te beijou.
- Fale baixo.

O rapaz não soube como reagir.

- Eu sei que ele me beijou. E sei que ele não sabe guardar segredos. E sei que nem você, Susumu-kun.

Soube menos ainda quando viu Nori empurrar sua testa com a ponta do indicador, sorrindo, desafiante, e foi na frente.

- Vamos, está ficando tarde.



Foi naquela noite que Nakahara Susumu decidiu dar uma chance ao que começava a sentir e ao que desejava ter.

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