terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Capítulo Um - Raiva! O caçador e a caça

Capítulo Um – Raiva! O caçador e a caça


Estava tarde e ele sabia que não deveria ter ficado tanto tempo no colégio.
Seus pais o matariam quando ele chegasse em casa.
Ficar até as sete no colégio...
O que ele estava pensando?

O garoto dobrou uma esquina, andou um quateirão, atravessou a rua, andou mais um pouco e dobrou outra, já vendo os muros entediantes e pintados do mesmo bege da sua vizinhança.
Puxou sua mochila, olhou para cima e o vento gelado bateu em seu rosto.
Quando voltou o olhar para baixo, viu, passando na sua frente, um enorme ser feito de sombras e olhos. Uma coisa parecida com uma pessoa, mas com muitos olhos, e muito escuro, parecendo feito ser de fogo escuro, mas...
Jogou-se para trás, aterrorizado com o que havia acabado de surgir na sua frente. Virou-se para tentar correr, mas suas pernas falharam e não quiseram se mexer.
E o pior: A coisa parecia ter ouvido, pois havia se virado na sua direção.

Mexam-se, pernas. Mexam-se. Vamos lá, por favor, eu tenho que fugir daqui senão morro.

O ser se aproximou.
Abriu a bocarra com milhões de dentes e preparou-se para morder sua cabeça fora.

Então, o estampido.
Um tiro, e a besta se virava para outro lado e começava a correr.

Outro tiro. Ela caiu morta e se desfez como se o vento a levasse.

O garoto virou os olhos na direção do barulho, na tentativa de ver quem o salvara. Em cima de um telhado estava uma pessoa com uma arma – Um fuzil – Um tanto grande nas mãos, levantando-se e o pondo preso às suas costas. A pessoa ia se virar para ir embora, mas de súbito olhou para o rapaz, olhou em volta, pulou do telhado para o muro e do muro para a rua. Caiu de tal forma que pôde se impulsionar para frente no momento que seus joelhos se dobraram, e quase voou na direção do pobre e assustado garoto.
Então, as sombras. Várias delas. Iguais às que quase haviam comido sua cabeça.
Sentiu um empurrão e caiu de lado, mas não demorou a se levantar e se preparar para correr. Olhou uma última vez para trás e viu a pessoa – Que agora, um pouco mais nitidamente, ainda parecia só uma pessoa, sem sexo distinguível, mas que usava um tipo de uniforme preto-e-branco e puxava, de dentro do casaco, uma longa adaga e um revólver.
Outros estampidos.
Grunhidos, barulho de sangue batendo e pingando no chão e, finalmente, passos ligeiros para longe.

O rapaz chegou em casa com o coração na boca. Como iria explicar aquilo para os pais?
“Queridos pais, fui atacado por um demônio hoje e um maluco armado me salvou e provavelmente perdeu um braço no processo”?

- Susumu, houve algo? Você está pálido, e chegando a essa hora... – Disse a mãe, levando a mão ao rosto. – Você... Você não foi assaltado, foi?

Ah, maldição. Iria começar o interrogatório.

- Vamos, meu filho, por favor... Você não-
- Fiquei estudando até tarde – Falou ele rapidamente, indo até as escadas. – Só isso, juro. Juro.
- Susu-

Tarde demais. Ele já havia corrido para cima.

Certo. Havia sido apenas, apenas, apenas uma ilusão. Não havia monstro nenhum, nem pessoa nenhuma. Iria só se deitar e tentar esquecer do caso. Se perguntarem o motivo dele ir dormir tão cedo, era... Cansaço. Sim, cansaço. Era a desculpa perfeita.

Sono...
Dormência.
Finalmente, o esquecimento.

Acordou e nem se lembrava do que havia acontecido. Levantou-se, trocou de roupa, tomou o café da manhã e pegou sua mochila.

- Até mais tarde, mãe, pai – Disse.

E o dia estaria ótimo caso ele não tivesse dobrado a esquina e entrado na mesma rua da noite passada.

Uma multidão em volta de algo.
Aproximou-se e, tímido, afastou as pessoas, pedindo suas licenças.
No chão, sangue.
Uma enorme mancha de sangue e uma trilha que se afastava dele, sumindo um tanto mais longe.

Então, havia acontecido.

Naquele dia, Nakahara Susumu, de dezesseis anos, quis apenas sumir e se ajudar a esquecer aquela alucinação do dia anterior, mas sabia que sua escola e seu ingresso para a faculdade e passar de ano era um tanto mais importante. Logo, apenas balançou a cabeça, tirou o quepe e se abanou com ele, pois estava fazendo um calor infernal naquele verão.
Na entrada da escola, outro inferno.
Gente demais.
Uniformes demais...
Diferenças demais. Ele, que estava no primeiro ano, usava o uniforme azul-marinho comum – Ele e todos os seus amigos e amigas. Os do segundo ano usavam um com uma única listra mais clara que descia dos ombros até as mãos e, nas calças, dos quadris até os pés. E os do terceiro usavam o mais berrante: O com as listras brancas.
Odiava aquelas listras. Era enjoativo ver tantas pernas se mexendo com aquelas cores.
E, ao mesmo tempo que odiava a hierarquia, odiava a igualdade de lá. Os garotos eram todos iguais – Ou muito parecidos – Todos com seus cabelos cortados e com a franja e sem passar um dedo da nuca, como era o dele próprio.

Havia apenas um rapaz que não seguia a regra, sabia-se lá o porquê. Falavam que ele trabalhava para os yakuza. Falavam que ele era de uma gangue; falavam que ele era um arruaceiro qualquer, um rebelde qualquer. Bem;
Para usar o cabelo mal-cortado como aquele, meio repicado, um tanto abaixo da nuca e sendo um homem, era preciso ser mesmo muito revoltado.

E, falando nele, lá estava o moleque – Garoto, já que também tinha dezesseis anos – Mas estava no terceiro ano, então já era um rapaz, não? – Com o casaco um pouco grande demais, o sapato gasto, o olhar de cansado e a boina perfeitamente conservada. E estava de frente para uma árvore, com um homem que devia ter o dobro da idade dele que estava recostado no tronco, na sombra, falando para o rapaz. Este, por sua vez, só balançava a cabeça positivamente, permanentemente quieto e talvez exausto demais de qualquer coisa que ele pudesse ter feito na noite passada.

Mas Susumu não quis ser pego espiando e ser tido como enxerido. Ainda de olho no rapaz – Ele o incomodava desde o primeiro dia de aula que fora há três anos, com aquele jeito calado e sem personalidade, com as olheiras permanentes e os cochilos durante a aula, além das fugas; ou ao menos era isso que ele havia ouvido sobre o garoto de nome Kurosawa Nori.
Então, quando o sinal bateu, fez questão de entrar logo. Subiu dois andares e se sentou numa cadeira perto da janela, pois até que gostava de olhar a rua de vez em quando.

E aula.
Aula.
Aula,
Aula;
Aula!

Tédio.

Estava quase fechando os olhos quando um garoto que se sentava atrás dele – O tal de Daisuke – Apontou para a rua e disse, um tanto animado:

- Olhem lá, ele está fugindo da aula de novo!

Pronto.
Era o que precisava.
Olhou para baixo, vendo a pessoa toda de preto correndo e só as listras brancas distoando daquilo. Ele não estava muito longe; dava até para ver seus olhos que pareciam estar finalmente ligados em algo, ou até mesmo assustados por alguma coisa.
Situação normal, pensou Susumu.

Virou o rosto e,
Quase que imediatamente olhou de novo para o rapaz lá em baixo.
Havia algo na mão dele...

Gaze?!

A mão dele estava enfaixada?!

Impossível não notar o branco no preto que era a mão dele.

E então, ele sumiu por entre prédios, correndo como se sua vida dependesse daquilo. Susumu, novamente não querendo se passar de fofoqueiro, virou o rosto e voltou a estudar.
Assim, passaram-se as horas até que a sagrada hora da saída chegasse. O garoto queria ir para casa logo, então foi abrindo seu caminho por entre seus colegas de classe e desconversando com seus amigos até chegar no portão do colégio. De lá, virou-se para a esquerda e fez menção de ir, quando uma pessoa passou por ele, esbarrando em seu ombro.
- Desculpe – Disse o rapaz, olhando-o nos olhos por meio segundo e voltando a andar, inabalável.
Então, aquele era Nori. O preguiçoso. O da mão enfaixada. O arruaceiro.
- Ei – Arriscou Susumu. Na verdade, nem sabia porque havia o chamado. Se ele não olhasse, tudo bem. Iria só para casa e seria feliz.
Mas ele parou, virou o rosto e perguntou:
- Sim?
E o garoto não conseguiu segurar a expressão de espanto ao ver a gaze que havia no rosto dele, cobrindo um corte que sangrava muito e manchava o branco.
- Ah, o curativo – Ele sussurrou depois de alguns momentos, pondo a mão na bochecha e puxando-o, deixando o ferimento amostra. – Obrigado, eu acho.
- Não, não era i-isso.
Por que estava falando com ele, mesmo? Ele não queria falar. Ele estava falando tão baixo, talvez estivesse zangado.
- Por que você fugiu hoje?
Maldição. Pergunta errada.
Levou a mão à boca e tentou se corrigir:
- Quero dizer, como você conseguiu isso?
Nori passou os dedos no machucado e olhou o sangue na ponta deles.
- Por que quer saber?
- Só perguntando.
E ele esboçou um sorriso – Que deixou Susumu ainda mais zangado; como assim ele sorriu aquele sorriso debochado para ele? Ele mal demonstrava felicidade, e quando o fazia era para deboche? –, se virou e deu de ombros, pondo-se a andar de novo.
- Eu não fugi – Disse ele, em tom baixo como usual. – Se for perguntar, eu só fiquei ausente por... Cinco minutos.
Então, era aquilo?
Arruaceiro,
Preguiçoso,
Esquisito,
Mentiroso?
Seguiu-o com os olhos, viu-o atravessar a rua e se encontrar com o mesmo homem da manhã – O com o dobro da idade dele, de cabelos negros e meios repartidos de lado e roupas brancas em estilo ocidental.

Quem eram aqueles dois, de qualquer maneira?

Um rapaz bizarro e um homem mais bizarro ainda, e aparentemente bem-sucedidos, pois um garoto de dezesseis anos daquele jeito não deveria estar tão adiantado na escola...

Era o fim dos tempos, não era?

Se no ano doze da era Taishou era assim, imaginava como iria ser no futuro...

Mas, bem,
Se aquele Nori sabia falar, então talvez pudesse entender, forçando um pouco mais a barra, o que ele era de verdade e as razões disso.
No dia seguinte, falaria com ele. Jurava que falaria.
Não iria machucar, não é? Não doeria, ele não o morderia, não é? Não tinha nada a perder. Só o faria por curiosidade, porque ele o incomodava bastante.

(E, por mais que tentasse negar, ficou aliviado quando passou pela tal rua e não foi atacado por nada; talvez tivesse sido mesmo uma alucinação)

Então, no fim da aula do dia seguinte, esperou na porta da sala do último ano. Viu todas as pessoas saírem e estranhou quando não o viu, então decidiu ir perguntar a um qualquer se ele havia vindo ao colégio ou se havia simplesmente fugido mais uma vez. O garoto que o respondeu, um que conseguia parecer ainda mais rebelde e revoltado que Nori, disse:
- O Kurosawa? Ele não veio ao colégio hoje.
Como assim?
- Não?
- Não.
- Por que?
- Por que quer saber?
- Porque eu queria falar com ele.
- Bem, acho que ele se machucou feio ontem e não pôde vir hoje. Tente semana que vem, talvez ele já tenha melhorado.
- Ah...
E, vendo que Susumu estava decepcionado, o garoto prosseguiu:
- Ou tente ir na casa dele, sei lá. Acho que o pai dele é médico. Se ele estiver machucado, vai saber.
- E onde ele mora?
- A sete ruas daqui, seguindo direto para o oeste. Rua Norumu, onze.
- Obrigado.
Mas, quando pôs o pé na rua, pensou duas vezes em ir. Talvez não fosse a melhor das coisas. E se ele fosse mesmo um yakuza? E se aquele homem não fosse com a cara dele e... E... E tivesse contatos?
Melhor não.
Melhor não...
Certo, vamos lá. Só por curiosidade, não é?
Esticou o braço e puxou o primeiro rapaz que reconheceu e disse, rapidamente:
- Vamos na casa do Kurosawa?
O garoto o olhou como se ele fosse a pessoa mais idiota.
- Está louco, Susumu?
- Louco?
- Ele vai te matar.
- Ele não parece ser capaz de matar muita coisa; quero dizer... Ele não me parece mais uma pessoa não assustadora assim; quero dizer... Ele... Eu, ele me incomoda, vamos lá, quero perguntar o porquê de ele ter faltado. – Disse, puxando o garoto pelo pulso.
- Susumu!
- Vamos, Hikaru, não vai doer. Você também é duas vezes maior que eu e acho que é maior que aquele maluco, qualquer coisa...
- Vai me usar de escudo humano?
- Por que não? – Sorriu. – Brinco. Qualquer coisa, corremos. É só por curiosidade. Juro.
Fingiu que não ouviu Hikaru murmurar um “é só porque ele é um dos melhores alunos sem precisar se esforçar” e estapeou seu braço quando ele murmurou “isso é inveja”.
Inveja? Daquele idiota?
Nunca.
Não sou anormal, perdão; quis dizer.
E assim, foram andar sete quarteirões até chegar na tal casa, que parecia um pouco malcuidada. Nada que espantasse o garoto, que bateu na porta e cruzou os braços, olhando um covarde Hikaru encarar um covarde Susumu.
Quando abriram a porta, o rapaz teve vontade de desconversar e ir embora. À sua frente estava o tal homem de cabelos um tanto desarrumados e repartidos, desta vez com apenas a camisa branca, calças pretas e gravata listrada em vez do terno completo. Ele, que era até um pouco bastante alto, olhou para baixo, levou a mão ao queixo fino e perguntou, sorrindo, talvez irônico:
- Sim?
Susumu respirou fundo e pôs-se a falar:
- É aqui que mora Kurosawa Nori?
Ouvindo aquilo, o homem levantou uma sobrancelha, e o rapaz notou que ela era até bastante fina.
- O que desejam com ele?
- Ele faltou à aula hoje.
- Eu sei.
- Gostaríamos de... Saber o porquê. Se ele está bem. Me falaram que ele se ma-
- Machucou, sim. Ele deve voltar à aula semana que vem, se querem saber. Bem, acho que já respondi tudo então já posso dar adeus e tenham um bom dia – Disse ele, fazendo menção de fechar a porta, que Susumu segurou.
- Um momento!
- O que é?! Eu tenho que cuidar dele!
- Você é o pai dele? – Perguntou, pasmo.
- Responsável. Quem é você, molequinho curioso?
- Um... Amigo. – Disse. – Conhecido – Corrigiu-se. – Estudo na mesma escola que ele – Melhorou. – Eu queria saber como ele se machucou pra-
- Para espalhar para a escola inteira? Você é engraçado, molequinho – Disse o homem, dando tapinhas na cabeça de Susumu. – Mas eu aviso que vocês passaram aqui. Quais seus nomes?
- Nakahara Susumu e Iinuma Hikaru.
- Certo. Eu dou o recado. Agora vão e tenham um bom dia.
Com aquilo, bateu a porta.

Susumu saiu de lá fumegando de ódio e não havia nada que Hikaru pudesse dizer que ajudasse a melhorar seu humor.

E, num quarto escuro, aquele mesmo homem se sentou em uma cadeira, olhou o rapaz deitado na única grande cama, o observou por alguns momentos, levantou-se e o cobriu. O movimento e o barulho o fizeram abrir os olhos e olhar em volta, alerta, apoiando-se nas mãos e pronto para se levantar.
- Ei, Nori, sou só eu. Fique calmo. Como está se sentindo?
O garoto, já reconhecendo o ambiente, levou a mão ao rosto e se sentou, suspirando. Então, pôs a mão no peito enfaixado, a levou ao estômago também enrolado em gaze e esparadrapo e balançou a cabeça afirmativamente.
- Você conseguiu fazer essa proesa de quase morrer ontem, hein? – Murmurou o homem, sorrindo. – Nem parece que já tem experiência nisso.
Silêncio.
Momentos depois, a voz baixa e um pouco rouca do rapaz se fez ouvir:
- Foi um acidente.
O homem sorriu novamente, feliz por ter ouvido aquela voz que não era ouvida havia quase um dia inteiro.
- Acho que sua kodachi não está mais dando conta. É muito curta.
- Me dou bem com ela.
- Mas você não baixou a guarda porque calculou errado o tamanho dela? Vamos trocar por uma espada maior.
- Um fuzil e uma katana. – Disse Nori, e ficou alguns momentos calado. – Não vai dar certo. É muita coisa para carregar.
- Uma kyu guntou. Igual à do exército. Eu posso conseguir uma dessas, se quiser, mas só se quiser. Acho que podemos tentar. Ou uma tachi... Ah, é, aqueles dois rapazes vieram te ver. Acho que se chamavam Nakahara Hikaru e Iinuma Susumu, ou o contrário. Não lembro. Eram seus colegas de escola e pareciam meio preocupados contigo, mas eu não a-
Parou ao ver que o rosto do rapaz se contorcia em várias expressões dolorosas, e então em uma de fraqueza. Ele iria cair para o lado, mas o homem o segurou antes e, tentando virá-lo para o pôr deitado direito, viu que os curativos em seu peito estavam ensopados de sangue.
- M-minoru – Murmurou ele, abrindo os olhos e parecendo fazer força para tal. – O... O corte, ele...
Ficou mais pálido que já era, os olhos rolaram para cima e perdeu a força no corpo.
Então, Minoru correu para pegar seus instrumentos cirúrgicos para reforçar os pontos no enorme ferimento.

A semana se passou lentamente e Susumu não conseguiu esquecer as várias situações pelas quais havia passado. Quando finalmente chegou a segunda-feira, ele foi, animado, para o colégio, morrendo de curiosidade para ver se aquele Nori já havia decidido voltar.
E demorou um pouco para ele aparecer, mas não passou despercebido.

Era raro ver um adolescente usando uma bengala e sendo quase que escoltado por um adulto. Ele pisava fraco e estava mais pálido que a neve, parecendo morto com as olheiras arroxeadas, mas não demonstrava dor. Continuava com o mesmo rosto inexpressivo de sempre e parou na frente de Susumu, olhando-o de cima – Era uns bons centímetros mais alto, até um pouco alto demais pra um garoto de dezesseis anos –, suspirou e murmurou:
- Queria me ver?
- N-não – Ele respondeu prontamente. – Digo, sim, sim, queria. Quero dizer... Er... – Disse, olhando para Minoru, para Nori e para a multidão à volta.
Olhou para frente, vendo o uniforme do rapaz, e notou que o segundo botão de cima para baixo não era o mesmo dos outros, sendo este preto em vez do normal prata.
Por que aquilo?
Como assim ele não ligava nem para o uniforme?
- Vamos, Nori – Disse o homem, puxando-o gentilmente. – Sua aula já vai começar. Eu vou te esperar aqui, certo? Não vá fazer esforço.
Foram, deixando Susumu para trás, horrorizado.

Que situação perturbadora.

E nem tivera coragem de perguntar o que queria.

Teve que esperar, primeiro, as aulas acabarem. Depois, dispensou Hikaru e esperou, no pátio, o rapaz descer, o que demorou bastante, tempo o suficiente para não haver nenhum estudante mais lá. Porém, quando veio, veio com o braço em volta dos ombros de Minoru, fazendo o coração do garoto disparar.
Sua recém-obsessão estava tão forte assim, hm?

Congelou quando Nori disse algumas coisas para o homem e veio, sozinho, em sua direção. Parou novamente na sua frente, olhou em volta, puxou o ar e falou, expressivo como uma rocha:
- Algo te incomoda?
- Não, eu, eu acho que não, mas eu-
- Se nada te incomoda, então por favor pare de me procurar. Eu mal te conheço.

Espera. O quê?!

- Como assim “eu mal te conheço”?
- Eu... Eu menti, por acaso?
- Estou preocupado contigo.
- Sem razão...
- Você devia ao menos ficar um pouco grato por isso! – Disse, irritando-se.
- Ei, por favor, se acalme, eu-
- Estou quase simpatizando contigo e você ainda me diz esse tipo de coisa? Você não tem muitos amigos, tem? Rude desse jeito, digo.
- Susu-
- E como assim você está no terceiro ano desse jeito?! Eu não entendo, se machuca de cinco em cinco minutos e foge em todas as aulas! Me explique, por favor! – Rosnou.
Incomodou-se ainda mais ao ver que Nori olhava, com um traço de preocupação no rosto, para Minoru, e que esse se aproximava.
- Você não está nem prestando atenção, está?!

Então,
Num piscar de olhos,
Susumu viu o mundo ficar esquisito. Arroxeado. Talvez esverdeado, talvez monocromático. Sentiu-se sem peso por alguns momentos e ficou estático por outros.
Só acordou quando sentiu-se ser empurrado para o lado e caiu no chão.
Tiros.

Aquele barulho era de tiros, não era?

Abriu os olhos e a primeira coisa que viu foi Nori caído no chão em meio a uma pequena poça de seu próprio sangue, levantando-se em seguida e recarregando um revólver.

A segunda coisa que viu, olhando para o lado oposto do rapaz, foi Minoru, mirando, também, com uma arma.

E entre eles e próximo de si mesmo havia uma criatura. Enorme, esverdeada, esquisita, humanóide criatura, de uma enorme boca e um único grande olho, de cabelos rebeldes e negros, e aquilo eram chifres?

Um oni?!

- Himura-san, afaste-se! – Berrou Nori, abrindo sua bolsa escolar com um puxão e tirando de lá bainha e adaga. – Eu mandei se afastar, Minoru, quem faz isso aqui sou eu e não você!
Então, atirou-se contra o oni, encravando a lâmina na sua barriga e empurrando para cima. O bicho não havia gostado nem um pouco daquilo e levantou uma de suas enormes mãos com enormes unhas, e aquele momento pareceu uma eternidade.
Desceu-a no ombro de Nori, que se jogou para trás em reflexo. Terminou com um corte leve na perna e não se deixou abalar por aquilo, pois se recobrou quase que imediatamente e, com um grito bestial, cortou – Ou tentou cortar – A garganta do oni.

Errou por pouco e feriu a clavícula da criatura. E aquele erro lhe custou muito sangue, já que ela foi rápida em socá-lo no peito.

Nori escorregou para trás, impulsionado pelo impacto. Dobrou o corpo e os joelhos, tentando respirar, ficando pálido novamente, com o uniforme ensopado de sangue, as mãos tremendo muito e o rosto contorcido em dor.

- Nori!

Ao ouvir a voz de Minoru, ele pareceu acordar da paralisia. Com ódio, pegou sua adaga caída no chão e se jogou mais uma vez contra o ser, encravando-a em seu peito com sucesso.
Ele caiu e se desfez como as sombras haviam se desfeito.

E Susumu lá, sentado, olhando, apavorado, Minoru se aproximar e segurar Nori pelos ombros, balançando-o de leve para se manter acordado.

E houve a sensação esquisita mais uma vez. Quando abriu os olhos, só havia o homem e o garoto sobre seu ombro, e ele o levando para longe, segurando suas coisas em uma das mãos.

- Ei – Disse Susumu, tímido.

Minoru olhou para trás, parecendo nem um pouco amigável.
- O-o que foi aquilo? – Perguntou.
- Sua raiva. – Respondeu ele, e ia voltar a andar caso o garoto não repetisse o “ei”. – O que você quer?
- Eu... Eu... Ele... Ele vai ficar bem?
O homem rolou os olhos.
- Resposta sincera?
- S-sim!
- Você acabou de matar ele.
- O quê?!
- Vem, talvez eu possa o salvar.

Horas depois, estavam no mesmo quarto escuro, com Nori dormindo calmamente na enorme cama. Minoru terminava de ajeitar os curativos quando Susumu, perturbado de ficar sentado na cadeira sem fazer nada, perguntou:
- E então?
O homem sorriu, finalmente.
- Ele está bem. Sempre fica bem. Não vai morrer tão cedo.
Silêncio.
- Então? O que... Era aquilo?
- Primeiro vamos nos apresentar. Eu sou Himura Minoru.
- Nakahara Susumu. Agora, por favor, me responda, o que era aquilo?
Em vez de responder, ele riu e pôs-se a andar pelo quarto.
- Engraçado como você conseguiu ver aquilo – Disse ele. – Que raro. Achei que só eu, os Kurosawa e os Akiyama vissem e mais alguns gatos pingados também. E você viu a luta toda, não?
- V-vi. O que era, afinal?!
- Sua raiva.
- O quê?!
- Sua raiva – Repetiu. – São emoções fortes demais que tomaram forma. Pode parecer maluquice, mas... Mais tarde eu explico. Preciso cuidar dele. Ei, espere, não vá embora. Fique aqui, cuide dele também, afinal você quae o matou. Então me diga, por que esteve tão interessado nele? Você sabe, não é muito comum isso acontecer.
- Ele é esquisito – Falou, lacônico, encolhendo-se na cadeira.
- E isso te incomoda?
- Muito.
- Por quê?
- Porque não entendo como ele está tão avançado nos estudos, como consegue se manter bem no colégio, como é um aluno tão brilhante, como todos os professores gostam dele mesmo com ele fugindo e dormindo no meio da aula, como-
- Imagino que você conheça a rotina diária dele.

Aquilo fez Susumu parar e pensar por alguns momentos. Rotina diária? Ele acordava, ia para a escola, voltava, ia assaltar e sequestrar e assassinar com os yakuza, voltava para casa e dormia, não?

- Acho que sim – Disse, finalmente.
Minoru fez uma cara irônica e se sentou em uma outra cadeira, na altura do travesseiro da cama. Pôs-se a desabotoar o colete de baixo para cima, não o contrário, como qualquer pessoa normal o faria. Um botão preto, segundo botão preto, terceiro botão preto, quarto botão – O mais superior, o perto do peito – Branco.
- Imagino que tipo de incômodo você já encontrou nas suas rotinas diárias. – Disse Minoru, fechando os olhos por alguns momentos. – Que tipo de incômodo que realmente te prejudicou. Imagino se você poderia falar de Nori assim.
- Bem, já que acabamos de voltar de um ataque de um oni, melhor eu falar: Semana passada fui atacado por um daqueles. Uns quatro, na verdade. Só sobrevivi porque uma pessoa su-
Parou ao ver Minoru pondo a mão na testa do rapaz desfalecido, enquanto olhava o outro seriamente.
- Você parece valorizar tanto os bons costumes que esqueceu de agradecer a ele.


Espera.

Como assim?

- Ele... Ele... Eu não entendi.
- Foi ele.
- Ele o quê?
- Ele que te salvou.
- Mentira.
- Se prefere achar que não, tudo bem. Não posso fazer nada.
- Impossível ter sido ele.
- De onde você acha que ele tira tantos machucados?


Bem, era uma questão a se pensar...


- Você está querendo me dizer que Nori luta diariamente contra esse tipo de criatura? – Perguntou, finalmente, momentos depois.
- Toda noite.
- A rotina dele é-
- De manhã ele estuda, de tarde ele estuda mais e trabalha comigo; se mata de estudar para ser médico; - Disse, com um pouco de amargura na voz – E às seis da tarde ele sai para só voltar às duas da manhã com uma contusão ou duas, e ás seis da manhã ele está de pé de novo para ir estudar.

Ah, não.
Não podia estar arrependido.
Não podia mesmo estar arrependido de ter tratado mal um rapaz que arriscava a vida dele toda noite para evitar que mais pessoas fossem atacadas...

- Mentira – Repetiu simplesmente.

E Minoru deu de ombros.

- Problema. – Respondeu.

Por alguns momentos, ficou o homem acariciando a testa do rapaz desacordado e tirando os fios da franja mal-cortada de lá, olhando-o com o olhar de maior preocupação. Não ligou para o fato que Susumu estava obviamente incomodado com tudo.
- Então, me conte mais sobre essas... Essas... Emoções. Aí talvez eu possa acreditar em você.
- Rapaz, não estou pedindo para acreditar em mim – Disse Minoru. – Só estou pedindo para que deixe Nori em paz.
- Me explique – Repetiu. – Por favor. Por favor.
- Hmf – Bufou ele, virando o rosto. – É complicado demais para você.
- Conte, vamos!
- Tem certeza?
- Absoluta.
- Certo, então – Disse ele, cruzando as pernas. – Vamos começar do começo. Já ouviu falar da família Kurosawa?
- Não.
- Sabia. E da Akiyama? Eles são mais famosos.
- Os... Exorcistas?
- Sim. São duas famílias de exorcistas. Os Kurosawa estão quase todos mortos e creio que só hajam uns três ou quatro vivos hoje, incluindo Nori. Já os Akiyama são um clã relativamente forte, com tradição e coisa e tal. O que eles fazem é simples: Expulsam e matam demônios. Certo?
- Certo.
- Você é um idiota; você acha mesmo que foi atacado por demônios? Eu já te disse que eram suas emoções. Há dois planos: O dos humanos e dos demônios. Às vezes um encontra o outro e temos que fazer um exorcismo simples. O problema é que há criaturas que são presas aos humanos, mas não pertencem a esse plano. São as concentrações de emoções. Toda emoção demais causa danos em potencial; algumas mais que as outras. Raiva é uma das que são ruins mais rápido, como pôde ver. E aí elas se condensam e viram esses seres que viajam por entre os dois planos. – Disse, fazendo uma pausa.
- E então Kurosawa-senpai... Ele...
- Ele caça essas criaturas – Falou Minoru, franzindo as sobrancelhas. – Ele impede que elas cresçam demais e fiquem descontroladas, como ficaram as que te atacaram. Lembra de quando você percebeu algo de estranho, que o mundo pareceu girar mil vezes mais rápido? É o plano entre planos. É o que acontece quando você percebe algo que não deveria perceber. A realidade te expulsa daqui.
- E é... Perigoso?
- Nori tem horas de viagem nesses planos entre planos – Disse ele, sorrindo um pouco. – Mas caso ele não consiga resolver o que não o deixa voltar para nossa realidade ou caso não consiga usar as próprias energias para voltar, ele está bem ferrado.

Então, Susumu ficou raciocinando pelo que pareceu ser minutos infinitos.
Então ele tinha que caçar emoções em demasia?
Não seria mais fácil se as pessoas simplesmente não sentissem demais?
Ele não iria conseguir fazer tanta coisa com tanta gente nesse mundo. Era uma tarefa inútil.

- E por que ele faz isso, sabendo que o trabalho nunca vai terminar? E é por isso que ele não tem emoções? Sei lá, ele leu algum livro de histórias clichês e selou os próprios sentimentos para não ser um problema? – Riu ele, nervoso com aquela idéia surreal toda.
Minoru havia ficado perturbado com a última pergunta e Susumu havia percebido isso.
Melhor tentar outra.
- E por que eu vejo essas coisas?
Demorou um pouco para ele voltar a falar.
- Às vezes, pessoas que já estão acostumadas com emoções fortes demais ficam com uma percepção aguçada. – Falou, olhando-o em seguida. – Você deve ter um bom histórico de raiva.

Então, era isso.
Um caçador de emoções, um médico atirador e um pobre rapaz que havia visto aquilo tudo e agora estava tendo uma epifania.

Perturbador.

Para sempre, perturbador.

Finalmente, criou coragem para perguntar mais uma vez, dessa vez não conseguindo esconder a preocupação na voz:

- Ele vai ficar bem?

Acalmou-se por meio segundo quando Minoru sorriu.

- Talvez – Disse.

Silêncio...

- Melhor eu ir para casa. – Falou Susumu, levantando-se e pegando sua mochila. – Não quero... Incomodar.
- Não diga isso, moleque.
- Susumu.
- Não diga isso, Susumu-kun. Fique aqui um pouco, espere ele acordar. Não deve demorar muito. Ele é muito alerta, sabe? Acorda por qualquer coisa. Você vai ter que se explicar pra ele, isso sim.

Então, decidiu avisar a seus pais que iria passar na casa de um amigo para fazer um trabalho. Foi e voltou e se sentou na mesma cadeira de antes, olhando-o dormir, e infelizmente com o tempo foi se entediando.
Estava cansado.
Prometeu que iria só dar uma cochilada; iria só descansar os olhos. Precisava falar com ele. Definitivamente precisava.

Perturbador.

Em um momento, ele estava dormindo, desmaiado, morto.

Fechou os olhos.

Em outro, quando abriu os olhos, estava ele e o rifle apoiados na janela aberta, mirando em algo lá em baixo, e houve os tiros. Ele sentiu o empuxo, mas se forçou a ficar no lugar e atirou mais três vezes.

Piscou.

No terceiro momento, ele estava sentado na cama, com o fuzil em seu colo, e Susumu o viu pela primeira vez em anos sem a boina. Era apenas ele, de tronco enfaixado, as duas mechas negras que desciam pela frente das orelhas e emolduravam seu rosto um tanto sério, a franja que parecia ter sido cortada e cortada várias vezes para não crescer em vez de ficar bonita, os olhos da cor do pior ódio que pareciam engolir toda a sala, o corpo magro, os braços com um pouco de músculos, as mãos sobre o corpo do fuzil.
Naquele dia ele quase foi ele. Chegou até a esboçar um sorriso. Susumu jurava que tinha visto o canto da boca subir um pouco e não era de jeito algum ilusão de ótica.
Mas então, viu que ele estendia a mão a ele.
- Vamos tentar de novo – Murmurou. – Meu nome é Kurosawa Nori e sou um caçador de emoções descendido da falida família Kurosawa. E você, quem é?

Ele tinha falado aquilo com tamanha convicção que quase pareceu inocente e puro. Quase pareceu uma vítima de ser o que era. Quase pareceu triste. Quase pareceu esperançoso.
Mas aquilo havia sido ilusão de ótica. Ele continuava com a mesma expressão dura e séria.

Segurou sua mão, apesar de tudo.

- Meu nome é Nakahara Susumu e sou um simples estudante e não sou ninguém muito especial, mas estou arrependido de ter feito o que fiz. Me perdoa, por favor?

O rapaz virou o rosto e Susumu ouviu a porta se fechar, mas não ouviu passos. Minoru havia entrado e estava parado; então dissera algo de errado? Tocara em algum assunto proibido?

- Me perdoe se disse algo... Algo que te incomodou. Juro que não foi minha intenção. – Falou rapidamente, tentando se corrigir. – Melhor eu ficar calado. Eu só falo bobagem assim, não é? Por favor, me perdoe, juro. Não foi por mal. Me perdoe. Me perdoe. – Disse, afastando-se e indo até a porta.

Viu que o homem havia levado uma das mãos ao rosto e a outra a seu ombro.

- Nori, por favor, vamos tentar não- - Começou ele, preocupado.
- Vamos tentar de novo – Murmurou. – Meu nome é Kurosawa Nori e sou uma caçador de emoções descendido da falida família Kurosawa. Creio que seja Nakahara Susumu. Prazer em conhecê-lo.

E aí, sorriu.
Por dois segundos, sem mostrar os dentes e nem com muita animação, mas sorriu.

Naquele dia, Susumu achou que sua curiosidade pelo caçador havia sido suprida. Mas não. Estava pior.
Quem era aquele rapaz com uma armadura invencível, que parecia ceder uma vida normal em nome da vida normal dos outros?
E quem era aquele homem que conseguira passar por aquela armadura? Quem eram aqueles mártires? Aqueles suicidas? Aqueles loucos?
Capítulo Um – Raiva! O caçador e a caça: Fim.

Um comentário:

  1. olá~! Aqui é a Heidi!
    Na boa, eu estou AMANDO ler a história!! quero acompanhar toda ela e especular que nem uma fã babona @_@ uhul~~

    queria entender a admiração+curiosidade+tudo queo o Susumu sente pelo Nori... huhuhu
    vou continuar lendo! bjs~

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