segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Capítulo Três - Parte Um - Confiança; deixar-se levar

Capítulo Três – Confiança; deixar-se levar




- Nori, acorde.

Sono.

- Está atrasado, Nori.

Atrasado?

- Estamos atrasados...

Que situação desagradável.

O rapaz se sentou, ajeitando os cabelos e os pondo para trás, bocejando logo em seguida. Esfregou os olhos e se espreguiçou, mal notando que tinha o peito nu e tentando se lembrar do que exatamente havia acontecido no dia anterior. Aquele outro rapazote havia o seguido até Ebetsu-shi, então haviam voltado para casa, havia caído no sono e...
Kyofu. Claro.
Dera de cara com o medo e talvez tivesse conseguido o vencer, caso não fosse...

- Nori?

Caso não fosse o que, mesmo?
Susumu? Não, ele havia chegado já quando estava derrotado, de joelhos e pedindo piedade.

Vergonha.

Yuzuki? Não, ela havia chegado no fim, quando estavam ambos morrendo.

Vergonha, vergonha, vergonha.

Realmente temera tanto assim pelo futuro de Minoru? Quer dizer, não parecia assustador agora, lembrando do que o kanjou dissera. Ele apenas dissera que iria torturá-lo e matá-lo e humilhá-lo e torturá-lo ainda mais. Só isso. E realmente soara tão horrível que ficara morrendo de medo na frente do kanjou.

- Nori?

Ele não deveria passar por aquilo. Não era nem um caçador.

Mas era um adulto e sabia se defender, não? Não precisava se preocupar com ele...

- Nori?! Acorde!

Odiava ficar em dúvida quanto ao que fazer, definitivamente... Proteger Minoru, sim, essa seria sua primeira ação.

E agora ele estava na sua frente, o olhando como se fosse a coisa mais esquisita, o cutucando e balançando, e...

Parou.

- Acordou?

O rapaz balançou a cabeça, prosseguindo para estender a mão para pegar seu uniforme jogado em uma cadeira. Enquanto o fazia, o outro ia murmurando, distraído, enquanto pegava o colete e a gravata nas gavetas:
- Faz um tempo que você não dorme na sua cama, eh?
Não se espantou ao não ouvir a voz do outro.
- Não estou dizendo para sair. Só estou comentando.
Pano se dobrando e desdobrando e sendo levantado.
- Nem estou dizendo que você chuta durante a noite, mesmo que, na verdade, eu esteja moído hoje.
O gakuran voava longe e o atingia na cabeça. O médico o pegou, o cheirou e quase que imediatamente afastou o rosto, em nojo.
- Isto aqui pode atrair corvos a quilômetros de distância, Nori. E o pior é que o sangue endureceu e acho que vai dar um enorme trabalho pra tirar. Mas falando nisso, você não estava pensando em usar hoje, estava?
Desta vez, as calças, as quais Minoru também pegou após elas terem atingido sua cabeça em cheio.
- Acho que sim... – Disse ele, sorridente, dobrando as duas peças de roupa e as pondo em cima de uma cômoda. – Hm, me diga uma coisa... O que houve com os botões do seu uniforme? Deu outro a alguém? Assim, senhorito Kurosawa Nori, você vai pro colégio sem roupa. Não vou ficar o tempo todo comprando e costurando botões pra você. – Falou, em tom brincalhão, fechando os olhos.
Bem, não sabia que sapatos poderiam doer tanto quando jogados contra um corpo humano. Esperava que ele jogasse as meias, ou então a camisa, ou a boina ou achava que até mesmo o fuzil doeria menos, mas não. Tinham que ser os malditos sapatos.
- Você não tem o mínimo senso de humor, Nori – Disse, suspirando e se preparando para tomar qualquer outra coisa na nuca. – Pare de ser assim chato desse jeito.
Conseguiu dar um tapa na bola de meias que voava na sua direção antes de atingir seu alvo. Ao ver aquilo bater no chão e ficar, o médico berrou algo que soou como um “Isso não tem graça, Nori!” e bateu no criado-mudo, silenciando todo o quarto. Não que tivesse algo para ser silenciado, claro.
- Que coisa, Nori! – Prosseguiu. – Não aceita mais brincadeiras?
E ficou encarando o garoto seminu que estava de braços cruzados, encarando-o de volta.


Ah, as cicatrizes...
E pensar que, há muito tempo, ele tinha a pele bonita que não lembrava porcelana quebrada. Não que ele se importasse muito. Não que alguém se importasse. Mas, também, não que não doesse ver as marcas dos cortes no peito dele, logo no meio, em cima do coração, e...


Eh? Ele estava saindo do quarto e o ignorando completamente e esse moleque por acaso estava vendo o outro moleque em vez do médico, afinal?

- Nori, o que eu já não disse sobre não andar seminu pela casa?

Som de passos na direção do quarto dos fundos.

- Está irritado com algo, afinal?

Roupas se desdobrando.

- É só me dizer. Pode confiar em mim, você sabe. Me desculpe por ter gritado.

Agora, som de sapatos.

- ... Nori? O que está fazendo?

E ele o encarava, de uniforme, ajeitando o quepe e as mechas do cabelo e procurando sua bolsa, ensopado de perfume.

- Já deve estar tarde. Se eu não correr, não me deixam entrar. – Disse o rapaz, monotônico, e chegou a abrir a porta e dar seus até-mais-tardes. Na verdade, até deu um passo para fora, mas Minoru o segurou antes que pudesse se distanciar demais. – O que há? Esqueci algo?
O médico o puxou de volta e o pôs sentado no sofá.
- Vou me atrasar. Melhor eu ir, Minoru. Me diga o que quer que eu cuido dis-
- Hoje é Sábado.
- -so.
- Não tem aula hoje.
Silêncio.
- Vá tirando esse uniforme. Ponha uma roupa mais confortável e vamos lá na casa da Yuzuki-kun.
Mais silêncio.
O rapaz levou a mão a testa, abaixou a cabeça e ficou lá, parado, pensativo.
- Bem, acho que você esqueceu – Riu Minoru, um tanto sem motivação, e deu um passo para trás apenas para ser segurado pelo garoto. – Mas também, fui te contar tarde da noite, naqueles seus momentos de luci-
Virou-se o encarou mais uma vez. Ele ainda tinha a mesma cara de morto.
- Não se finja de alegre, sabe que eu odeio disso – Murmurou Nori, levantando-se e desabotoando o gakuran. – Não precisa fingir. Eu sei o que está ocorrendo.
- Se sabe, ent-
- Não faz mal. São só algumas poucas coisas que eu esqueço.
- Você tem todas as razões para esquecer o dia da semana e o que eu te falei quando resolveu acordar, só para voltar a dormir minutos depois.
- E você sabe que não é apenas isso que me acontece...
- Você precisa descansar um pouco, Nori. Tudo isso está te fazendo muito mal.
Ele apenas balançou a cabeça, voltou ao seu pequeno quarto e saiu de lá carregando calças pretas e camisa branca, indo na direção do de Minoru.
- Err... – Murmurou o homem. – Não se esqueça de tomar um banho.
- Eu não iria esquecer disto – Disse o rapaz, em tom de voz esquisitamente grosso.

E então ele entrou, pegou o resto das roupas e foi, fechando a porta do banheiro, desejando um pouco de paz para pensar. Sinceramente não se importava muito de estar imundo e sentado no ofuro, e muito menos de estar se lavando dentro dele – Sendo que seria mais honrável e cerimonioso usá-lo apenas para descansar – E mesmo que Minoru entrasse e lhe desse uma bronca por isso, continuaria não se importando.

Nori.

Fechou os olhos e suspirou. Teria que fazer algo. Definitivamente. Quanto a tudo, mas especialmente quanto a Minoru achar que estava ficando doente. Quem era ele para achar aquilo, afinal? Ele nem médico era.


Haha.


Se dizia que não estava doente, não estava doente.
Se conseguia levantar e ir estudar, trabalhar e caçar, não estava doente.
Se conseguia ao menos caçar, não estava doente.
Só estaria doente caso um dia não conseguisse sair da cama, e aí coisas muito ruins aconteceriam.


Passou as mãos pelos cabelos com força, abaixando o rosto mais uma vez.

Doía quando ele se lembrava do dia anterior. Doía muito. Doía especialmente porque agora conseguia distinguir o motivo de ter falhado daquele jeito.


Era... Aquele desespero, não era?


Havia acabado de lidar com uma onda de kanjou... Estava cansado; exausto, um pouco ferido e talvez até um pouco irritado, mas estava relativamente bem. Estava relativamente bem até ele aparecer. Kyofu.

E aí fora como uma montanha-russa. Ficara desesperado. Nunca esperou ter que enfrentar um kyofu tão cedo – Prometera, há três anos, aprender a escolher suas lutas e gostaria de manter a promessa para sempre – Ao menos não sem preparo físico e mental antes.
Não sem ao menos ter uma boa noit... Semana de sono.
Mas acontecera. O mundo ficou leve, apertado, seu peito doeu e ficou parado, apenas olhando, sem conseguir ao menos fazer uma expressão digna para o momento, sentindo o peito pular e pular e seu coração pulando no seu estômago e aquele pensamento horrível que não deveria temer nunca-

-Eu vou morrer-

-Nunca, nunca mesmo, até porque iria morrer jovem e tinha total consciência daquilo.
E Minoru ainda tinha que existir e não ser mudo para insistir na hipótese de doença. Para o inferno com ele. Para o inferno com aquele mo-


- Nori, vai demorar muito?

-leque maldito que, se os deuses gostassem dele, teria esquecido que Minoru provavelmente falara algo sobre ir na casa de Yuz-

- Tem gente te chamando aqui.

-uki e além do mais por que aquele linguarudo do médico decidira falar tanta coisa para ele?

- Dá para ser, Nori? Você está há quase vinte minutos nesse banho.
- Quem é que está aí? – Disse ele, apenas alto o suficiente para o som passar pelas paredes do banheiro.
- Ohayo-
- Vá embora, eu já disse que não quero nunca mais te ve-
- Foi seu amigo aqui que me convidou, para a sua informação!
- Então mande este meu amigo para a-
- Nori, eu estou ouvindo, se não se importa.
- Não me importo mesmo. Mande este meu amigo para a-
- Você citou que iria fazer bolo, Himura-san? É você que vai fazer?
- Sim, acho que sim, mesmo eu não sendo a melhor pessoa na cozinha. Por quê?

Foi aí que a porta do banheiro se abriu como se por um chute, mas não havia Nori algum por trás dela. Muito pelo contrário – Ele ainda estava sentado no ofuro, pelo que Susumu vira – Mas estava respirando fundo – Aparentemente para se acalmar – E agora Minoru estava com as mãos na boca como se tivesse feito algo de muito errado – E ele não parava de sussurrar “desculpe”.

Frescos.

- Ohayo, Kurosawa-senpai – Disse o garoto, abrindo um sorriso após o pequeno susto. – Como está?
- Ohayou, Nakahara-kun – Respondeu o outro, agora completamente calmo. – Eu poderia estar melhor hoje.
- É uma pena. Espero que melhore.

Respirou fundo para não responder de modo rude a Susumu e se levantou, puxando a toalha junto, mas sem a enrolar na cintura. De começo, o outro rapaz franziu as sobrancelhas e se demonstrou espantado com a falta de respeito de Nori, ao mesmo tempo em que não conseguia tirar os olhos do corpo dele.
Era esquisito, claro. Feio. Os machucados avermelhados da noite anterior ainda estavam na sua pele.

Piscou e sentiu-se ligeiramente confuso quando o alvo da sua atenção se virou e finalmente se enrolou na toalha, olhando-o com escárnio, ao mesmo tempo em que Minoru apertou seu ombro – Que mania irritante aquela do médico! – E o puxou para trás.
- Vamos deixar ele se trocar, Susumu-kun – Disse ele, o virando para que não mais visse o outro rapaz. – Me perdoe pelo incômodo.
Sentaram-se no sofá e poucos momentos depois Nori saiu do banheiro, terminando de abotoar sua camisa social branca e, com sorte, já de calças. Susumu demorou a olhá-lo de cima a baixo por medo de que ele ainda estivesse seminu e achou que o médico compartilhou do seu mesmo medo.
- Perdoem o atraso e a grosseria – Disse ele, fazendo uma reverência e o encarando. – Fique à vontade, Nakahara-kun.
- F-ficarei, Kurosawa-senpai – Gaguejou o outro, surpreso novamente com ele. – Ah, e o seu botão, ele...
- Fique.
- Mesmo?
- Fique. Eu te dei uma chance para provar que não é só um perseguidor obsessivo.
- Deu?
- Dei.
- Não parece.
Assim, Nori virou os olhos e deu as costas a ele e mais dois passos na direção da cozinha. Virou-se, porém, e olhou Minoru, dizendo:
- Bolo?
- Sim.
- De?
- Qualquer coisa.
Murmurou um apressado e sussurrado “sim” e entrou na cozinha, deixando os dois sozinhos.

- Er... Ele é que...
- Cozinha?
- Sim!
- Sim, ele cozinha.
- Não acredito.
- Por que?
- Não tem uma cozinheira, empregada...? Você não tem esposa, Himura-san?
- ... Não.
- Por que não?
- Porque não.
- ... Kurosawa-senpai cozinha bem? Ele é tão magro, acho que nem deve comer o que ele mesmo faz.
- Cozinha bem, claro que sim! Eu sou exigente com comida. Cozinha como ninguém. Como morou sozinho por quase três anos, teve que aprender a se virar.
- E... Ele vai fazer bolo agora, certo?
- Sim.
- Para Akiyama-san, certo?
- Sim.
- Posso comer um pouco?
- Por que não poderia? – Perguntou ele, levantando-se. – Ah, você tomou café da manhã? Se quiser, tem café aqui.
- Você só...
- Bebe café? Bem, é o que eu sei fazer e me mantém acordado, e-
A porta da cozinha se abriu e Nori pôs a cabeça para fora.
- Himura-san, acabou o açúcar.
- Mas como?! – Perguntou o médico, pasmo. – Eu comprei anteontem!
- Bem, você deixa as janelas abertas e...
- Kanjous de felicidade feitos de criancinhas inocentes não existem! Eles não conseguiriam fazer isto! Roubar todo nosso açúcar...
Nori virou os olhos de novo, sumiu por uns instantes e voltou com um pote vazio.
- Nada. – Disse.
- Oya oya, que coisa... – Murmurou Minoru, franzindo as sobrancelhas. – Acho que teremos que ir comprar mais. Bem – Falou, levantando-se e tirando alguns ienes do bolso, - Acho que isto é o suficiente. A padaria já deeve estar aberta. Tente ser breve e não encontrar nenhum kanjou no caminho.
- ... Vou tentar. – Disse o rapaz, olhando para Susumu. – Gostaria de ir comigo?
- Eu? – Perguntou ele, apontando para si mesmo. – Ah, sim, sim! É muito longe?
- Algumas ruas daqui.
Susumu balançou a cabeça positivamente e se levantou, seguindo Nori até a porta. Despediu-se do médico com um aceno rápido e tímido e saiu, vendo o outro garoto já andando na frente e enfiando todos os ienes nos bolsos das calças.
- Um momento, Kurosawa-senpai, não corra tanto – Falou, indo atrás dele. – Não tenha tanta pressa assim.
Ele não chegou nem a o olhar. Só prosseguiu andando.
- Então...
Silêncio. Susumu olhou para cima: O céu estava azul, com algumas nuvens e um vento fresco soprava. Havia pouca gente nas ruas e...
- Então, ahn...


Ruas. Ruas. Ruas.


- Kurosawa-senpai, é que...


Só sons de passos.

Socorro.

- Ei, um gato. Você gosta de gatos, Kurosawa-senpai?

Estava o deixando louco.

- Tem muitos gatos por aqui... E corvos, também. Você... Gosta de algum animal?

Ele só podia estar brincando.

Chegaram na padaria e Nori não havia dito uma palavra sequer. Ele comprou o maldito açúcar, agradeceu à vendedora e lá se foi na frente, sem ao menos olhar para ver se Susumu ainda estava o seguindo ou se não havia sido atropelado pelo bonde.

Mais silêncio.

Só ocorreu algo diferente quando Susumu sentiu-se bater em algo e quase derrubou Nori junto, que havia subitamente parado.

- Ei, ei, ei, por que você...
- Vamos parar aqui um instante – Murmurou o rapaz, recostando-se em uma das vigas de ferro.

Vigas de ferro?
Susumu olhou, novamente, em volta. Aquilo onde estavam era aparentemente um projeto de prédio ou algo do tipo abandonado. Havia sacos de cimento por todo o lugar, poeira por todo o lugar, algumas ferramentas jogadas no chão e, logo à frente, a luz do sol e pessoas andando.

- Por que paramos... Aqui? Justo aqui?

- Eu gosto deste lugar.
- Por que?

- Porque gosto.
- Sem motivo em especial?



- Não vem ao caso o motivo de eu gostar ou não daqui.
- Diga, por favor, Kurosawa-senpai.
- A vista é ótima – Disse, apontando para as pessoas andando ao longe, no sol. – Não acha?
Susumu virou os olhos para observar melhor e, sinceramente, não achou nada de mais a visão de gente comum andando comumente sob a mesma luz de sempre. Porém, balançou a cabeça afirmativamente e se espantou quando Nori cruzou os braços.
- Se não acha, é só dizer.
- Como você s-
- Eu caço emoções há quase cinco anos, acha que não saberei quando você está mentindo?
- Ah... – Fez ele, pondo as mãos atrás das costas. – Me desculpe.
- O que eu mais prezo é sinceridade.
- É?
- Sim. Nakahara-kun, eu vou ao colégio desde sempre e conheço emoções direito faz bons anos. Acha que não cansou ver tantas mentiras?

Desta vez, foi a vez de Susumu ficar calado.

- Não gosto daquele lugar – Prosseguiu Nori, fechando os olhos. – Já matei tantos kanjou lá que perdi a conta. E é sempre a mesma coisa. Desgosto, inveja, raiva... Sempre. Sempre.

Algum corvo estava cantando em algum lugar.

- Mas, me perdoe pela mudança de assunto – Disse o Kurosawa, abrindo-os. – E, apenas para você não me perguntar mais, eu gosto desse lugar por causa disso – Falou, girando o antebraço e mostrando uma cicatriz enorme que tinha nele.
Susumu ficou olhando aquilo feito idiota.

- Então é a cicatriz... Huh... Uma cicatriz... Especi-
- Sim. Minha primeira.
- Do seu primeiro kanjou?
- Não. Do meu primeiro que mostrava algum perigo.
- Algum perigo?
- Algum perigo. Do tipo que pode matar.
- Isso não é “algum perigo”. É muito perigo.
- Algum perigo.
- Hm... E... – Murmurou Susumu, perturbado. – Há quanto tempo foi isso?
- Há três anos.
- Quando você tinha-
- Treze anos. Foi quando eu-



-Havia jurado escolher melhor as lutas. Jurado, jurado. E agora estava na hora de provar que já estava forte o suficiente para lutar contra algo realmente importante. Estava mais do que na hora de mostrar que era útil em algo.

Ficar matando dezesseis-avos de emoções para sempre não estava nos seus planos.

Então, cá estava. Ele e o kanjou. Parecia ser um taikutsu. Tédio. Seria fácil, não? Afinal, ela só estava o olhando de canto de olho, obviamente entediada, mexendo nos cabelos escuros e balançando a cabeça.

- O que é? – Perguntou ela.


Ficou calado.

Agora que se percebia, fora calado desde sempre...

- Vamos, me conte. Qualquer coisa para eu arranjar o que fazer.

Tirou a kodachi da bainha e carregou o revólver.

- Lutar?

Apontou o revólver.

- É uma ótima idéia.

Atirou duas vezes e se jogou para trás ao ver que a taikutsu havia simplesmente desaparecido e reaparecido na sua frente. Ela estava se animando. Não era muito bom que isso ocorresse.
Então, girou a kodachi e jogou o braço na direção do rosto da kanjou, já tendo se preparado para caso ela aparecesse em outro lugar – Coisa que ela fez, e deu de cara com o revólver e uma bala a atingiu na bochecha. A criatura que parecia um tipo de demônio de pele tão branca que soava transparente, de cabelos tão negros que mal refletiam a luz e olheiras tão pesadas que estavam roxas foi para trás, com as mãos no rosto e cabeça baixa, como se tentando se esconder do olhar desinteressado – Entediado? – De Nori.

Não, claro que não. Ele estava tremendo. As mãos tremiam, as pernas tremiam, o coração pulava. Mas precisava manter o rosto calmo, não precisava?
Precisava passar confiança. Passar confiança. Era o que todos os caçadores lhe diziam. Controlar as emoções. Não deixar passar o medo. Ficar calmo. Muito calmo. Insanamente calmo. Doentemente calmo. Não pensar muito. Ficar calmo. Respirar devagar. Manter-se alerta. E calmo.


Ficar calmo mesmo com a taikutsu rindo...

E rindo, e rindo, e sorrindo e batendo palmas e levantando a mão cheia de unhas tão afiadas e encurvadas que pareciam garras de pássaros e-

Respirar fundo, Nori-



O máximo que ela pode fazer é te matar.



Encravou a kodachi na palma da mão dela e rasgou na direção do braço. Tentando ignorar os gritos de dor e o sangue escuro caindo em seu rosto, a arrancou e a levantou para encravá-la, finalmente, em seu peito ou pescoço e a matar de uma vez por todas.

Foi quando sentiu algo o puxar para trás. E dor. Bastante dor na cabeça.

Ela estava o puxando pelos cabelos... E com a mão no seu pescoço. Como acontecera tão rápido, afi-

- Kurosawa-senpai, acho que devemos ir, está ficando meio tar-

-nal?

Agora, muita dor. Infinita dor, no braço, e a sensação de algo gelado entrando, entrando, entrando e rasgando a carne e despedaçando tudo na sua frente e-

Fique calmo, Nori, calmo-
Você vai sofrer tão mais que isto mais tarde, não há necessidade de lamentar.


- Aquela foi a primeira vez que ele me viu daquele jeito.
- Hã?


Sangrando, sangrando, sangrando, sangrando, sangrando, sangrando tanto que iria certamente começar a sentir frio e cair lá mesmo.

E ela não o largava.

E dizia coisas que ele no momento não conseguia entender.

E precisava matar ela logo-

Ficar livre logo-

Se salvar-

Logo-

Ela virou o rosto, grunhindo de dor, e aquilo foi a chance do rapaz tentar não morrer.
A ponta do revólver ficou debaixo do queixo dela e houve o tiro. Na verdade, três. O máximo possível. Só parou quando pararam de vir balas e não teve coragem de gritar ou reclamar quando o corpo da taikutsu caiu por cima dele, levando-o ao chão.

- Eh, Nori-kun!

Mas como?

- Consegui te achar, estava ficando preocupado...

Como? Como isto?

- Você sumiu há quase um dia inteiro, sabia? Se quiser ir caçar assim deste jeito, avise antes. Você saiu e não voltou e não precisou nem que os Akiyama viessem para eu saber que precisava te trazer vivo.

Ele tirou o corpo de cima do garoto e sorriu. Estava suado, cansado, até um pouco machucado, cheio de pequenos cortes ali e aqui. Claro que estaria tão mal. Mas, ainda assim, o espantava que uma pessoa normal – Não-caçadora – Conseguisse chegar viva até ele. Elas não costumavam aguentar por muito tempo no plano entre planos...

- Moleque, você só me dá trabalho – Disse ele, ainda sorrindo, mas claramente sentindo dor. – Levante-se, vamos lá.

E o fez – Pôs-se de pé apoiando-se em só um dos braços – E escondeu o ferimento atrás do corpo.

- Vamos voltar. Já conseguiu o que queria?
- Já.
- Então-
- Mais ou menos.
- Hm?
- Vou ter que tentar amanhã.
- Ah. Me desculpe.
- Tudo bem.
- Vamos?
- Vá na frente.
- Por que?
- Porque sim. Vá.
- Nori, não estou te entendendo.
- Não estou pedindo para entender. Estou pedindo para ir. Por favor?
- Houve algo que eu não possa saber, rapazinho?
- Não.
- Certeza?
- Sim.
- Nori, você tem treze anos. Não vou te deixar aqui.
- Vá.
- Pare de ser teimoso, molequinho.
- Vá.
- Está com vergonha, é isso?
- V-vá.
- Hm?

Então, como se por traição do destino – E mais que claramente foi uma – Uma gota de sangue caiu no chão.

Minoru quase que imediatamente virou os olhos para a pequena mancha no chão e observou, imóvel, mais duas, três, cinco, sete, onze gotas caírem e, então, um pequeno filete de sangue, e então mais dois ou três daqueles escorrendo por seus dedos, e o garoto não parava de sangrar.

- Me deixe ver isso – Ordenou.
- Não.
- Me deixe, Nori!
- Não!
- Você quer morrer, por acaso?! – Gritou, segurando-o pelo pulso e puxando para trás a manga do gakuran e fazendo uma expressão de extremo susto e desgosto. – Kuso! Seu desgraçado, queria mesmo ir pra casa assim e morrer no meio do caminho?!
- Não-
- Vamos sair daqui nesse exato momento! – Disse, enfiando a mão no bolso do garoto e tirando de lá o omamori – Você vai para o hospital agora mesmo.
- Não, não. Eu não vou, Himura-san. – Murmurou ele, se afastando. – Não foi nada. Juro. Passa em uma semana. Uma... Semana. É. Sete dias. Ah, minha cabeça – Disse, levando a mão à testa. – Acho que preciso comer alguma coisa salgada.
- NORI!
- Eu estou bem!
- Me ouça, Nori! Você está pálido-
- Eu sou páli-
- Cale a boca! – Berrou, com todas as forças.


- Aquela foi a primeira vez que ele me pegou nos braços, mesmo que eu estivesse disposto a fugir dele. – Disse, gesticulando.


- Mas que maldição, Nori! Eu quero que você viva, não percebeu?! Vamos. E vamos agora. Pelo amor de tudo, Nori. Deixe de ser teimoso.
- Eu não quero dar trabalho. – Murmurou o garoto, abaixando o rosto. - Gastar dinheiro, Himura-san.
- Um funeral vai custar muito mais que te internar.


- Naquela época, ele ainda não sabia o que poderia fazer...


- Não vai – Sussurrou ele, passando a mão no rosto suado e o manchando de sangue. – Não vai. Não vai. Não vai... Himura-san, eu... Não precisa pagar pelo fu... Funeral. Eu... Eu posso ser enterrado em qualquer cova... e... E...


Sangue. Tanto, tanto, tanto sangue.


- E...


Ele não iria parar de escorrer?


- E...


Estava morrendo, era isso?


Som de rasgos. A camisa branca de Minoru estava arruinada. Ele, agora, amarrava o pedaço no braço ensanguentado com força, para não deixar o sangue sair.

- E...

Estava tudo ficando escuro, mas, não era para ficar. Não havia perdido tanto sangue. Era psicológico. Com certeza era.

Ficar calmo. Respirar fundo.

Fechou os olhos e se sentiu levantado do chão pelas pernas e costas, franzindo as sobrancelhas em seguida. Com treze anos, já era um moleque bem alto e um pouco pesado e não era para Minoru ficar o carregando para lá e para cá daquele jeito. Além de ligeiramente vergonhoso, era cansativo para ele.
Até tentou se desvencilhar, mas ele o segurou com mais força contra o corpo.

- Fique quieto, Nori.

Então, quando o amuleto tocou o sangue e trocaram de dimensões, a viagem foi demais para o garoto. Acordou em uma cama de hospi-



- Pensando bem, essa cicatriz é mais vergonhosa que marca de orgulho – Ponderou Nori, olhando para o alto, e Susumu percebeu um pouco de vergonha na voz dele.
- Ehhh, então me conte o que houve.
- Não.
- Por que não?
- Outro dia.
- Quando?
- Pergunte a Himura-san se quiser saber.
- ... Está fazendo de novo.
- Hm?
- Chamando ele de Himura-san.
- Quando eu o chamo pelo nome, é um equívoco meu.
- E quantos equívocos.

Ele não respondeu. Só se distanciou e foi para o sol.

E Nori era até... Um pouco divertido. Engraçado. Diferente. Continuava esquisito, mas agora era uma esquisitice atraente. Especialmente agora que ele estava falando, mesmo que pouco. A voz dele até que era bonita. Um pouco. Se ele não falasse tão baixo, seria melhor. Era um pouco grave, mas nem tanto. Definitivamente era séria. Aquele moleque emanava sério.
E ainda sabia cozinhar?
Se fosse Noriko, talvez valesse a pena arriscar algo com ela.
- O que está pensando, Nakahara-kun?
Ah, claro, ele falava do nada. Mas estava até se acostumando.
- Eh? Eu?
O outro balançou a cabeça afirmativamente, sem nunca o olhar nos olhos.
- Em... Em...
Silêncio.
Até que era interessante, ele, e-
- Uma garo-
Nori o encarou com a maior expressão de não estar achando graça que Susumu já havia visto. E ele já havia visto muitas.
- -ta. Sério. Juro.
Ele balançou a cabeça de novo.
Susumu respirou fundo, apertando as roupas com as mãos, e disse subitamente:
- Se eu falar que estou pensando sobre você vai soar esquisito.
- “Sobre” mim?
- S-sim! Sobre você.
Sentiu-se ir ao chão quando ele soltou o que parecia um começo de riso. Um “pfft”. E até que ficou com o canto da boca levantado por um tempinho.
- Um dia prometo pensar sobre você também, Nakahara-kun.
- Eh...
- Agora pode parar.
- C-certo...

Maldito. E agora ele estava andando aparentemente feliz e chegou até a fazer cafuné em um gato que estava parado na janela de sua casa antes de bater na porta.

- Voltamos, Himura-san. – Disse Nori, pondo o saco de açúcar nas mãos dele, dando alguns passos para frente, voltando, o pegando e indo para a cozinha. – De agora em diante eu cuido dele.
E foi, assobiando uma canção qualquer. Sumiu atrás adquela porta, deixando Susumu e Minoru se encarando, confusos. O rapaz ia puxar ar para falar algo, mas o adulto foi mais rápido:
- O que você disse para ele?
- E-eu?
- Sim!
- Nada!
- Disse algo. O que foi?
- Você lê emoções, também?!
- Mais ou menos. Fale logo.
- Não foi culpa minha!
- Ele não costuma sair assobiando e tirando com a minha cara. Moleque, o que você disse para deixar ele deste jeito?
- P-pensei sobre ele. – Sussurrou, atropelando-se nas palavras.
- O quê?
- Nada.
- Pensou nele?
- Sobre ele.
- ... Diferença...?
- Sobre. Não em.
- Você deve ir muito bem em Línguas.
- Não tiro notas abaixo de nove e meio.
- Pensou boas coisas.
- ... Ahã.
- Que tipo de coisas?
- Eu acho que tenho privacidade, Himura-sa-
- Ah. Não quer contar. Mesma coisa que dizer que estava pensando as piores coisas.
- Você está enganado!
- Estou?
- Está! Eu estava... Pensando... Er... – Disse, levando a mão à testa. – Que ele é um esquisito legal e que ele poderia cantar bem se falasse mais alto.
- Ahã.
- Juro!
- Tá. Vou fingir que foi só isso. Susumu-kun, além de mexer com emoções, entendo da parte bruta do ser humano. Dá pra ver que você... Bem... Não vamos falar nisso se não quiser, certo? Só aconselho que... Ah... Não aconselho nada. Esqueça. Melhor, aconselho sim. Pense longe da gente.
- Certo. Lembrarei disto.
- É bom. Quer torradas?


... Onde havia se metido, mesmo?

Bem... Ao menos tinha alguém novo para falar e...
Franziu as sobrancelhas, olhando o chão enquanto Minoru bebia o maldito café e lia o maldito jornal. Nori assobiava ainda mais alto da cozinha e os corvos não paravam de grasnar do lado de fora.

Ainda assim, havia um silêncio infernal.

Qual era o problema de pensar sobre aquele garoto, além de todos?

Parar de pensar sobre ele.

Parar de pensar sobre ele.

Parar de pensar nele.

Parar de pensar sobre ele!

Parar de pensar em como ele estava semimorto no dia anterior, como estava acabado, ensanguentado, ferido, machucado, arrasado, humilhado, adorável, desesperado, se-

Pare com isso, Susumu! Mas que maldição!
Mal o conheço. Mal o conheço!

Chegou a notar Minoru o olhando por meio segundo e voltando a ler o jornal, mas não deu atenção para se ele havia percebido tudo ou não.

E até que o cheiro do bolo estava ficando bom...

Por que ele tinha que ser tão... Esquisito? Tão diferente... Tão... Tão...




- Nakahara-kun?




Tão... Como dizer... Atraente? Não, não era essa a palavra. Interessante? Talvez. É, sim. Interessante. Alguma coisa nele o atraía como flores atraem borboletas. É, sentia-se exatamente assim: Como uma borboleta se aproximando de uma... Planta carnívora.



- Vamos logo, moleque. Pare de olhar o nada!



Levantou-se quase que imediatamente, com o rosto vermelho.

- Me desculpem – Disse. – Eu... Estava perdido nos pensamentos.
- Vimos – Falou Minoru, levantando as sobrancelhas. – Está tudo pronto. Vamos sair. Não demorará muito.
- O tempo voou...
- Eu sei. É o que acontece quando se está distraído.
- Me desculpem.
- Não se preocupe. Só vamos logo, senão não vai dar nem para você comer.

Saíram e Susumu foi rápido em ficar a alguns passos de distância deles.

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